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80 anos. Dia de celebrar a vida de Chico Buarque. A sua e todas as que tem cantado.
"Ah, os jovens... são rebeldes, gostam de viver no limite..." Não é bem assim. Por exemplo: o jovem, que acaba de se atravessar à frente do meu carro, atravessa a estrada em diagonal e, sem tirar os olhos do telemóvel, vai ao encontro da passadeira. Faz bem. Isso de arriscar a vida é um bocado parvo. Se for para morrer, que seja em segurança.
A viagem, de regresso à consciência, foi lenta e dolorosa. Primeiro, ruídos que, afinal, eram vozes. Depois, melodias de vozes, ainda sem palavras. De seguida, palavras desconexas, sem significado. E, finalmente, começaram-me a chegar palavras, palavras mesmo, que eu juntava em frases, mentalmente, dando-lhes sentido. Sara Tavares. Falavam de Sara Tavares. Uma das enfermeiras tinha ido vê-la, ao vivo, e apercebe-se do meu interesses na conversa. "Gosta da Sara Tavares, Miguel?" Digo que sim, com a cabeça. "Já a viu, ao vivo?" Volto a dizer que sim. "Ela é extraordinária". "As pessoas continuam a pensar na Whitney Houston e no Festival da Canção, mas ela está noutra fase. Sentada, com a sua viola, a cantar em criolo..." Sorrio. "Que pena não termos aqui a música dela, senão ouvíamos os dois". Voltei a sorrir. Sentia, de resto, que a vida começava a sorrir-me de novo.
Regressei a casa, depois de quase um mês no hospital. Ouvi Sara Tavares. A cantora que passei a associar ao meu caminho de regresso à vida. Custa-me aceitar que ela, hoje, fez o caminho, na direção contrária.
Ah, as reuniões de condomínio! A gente, ali, na entrada do prédio... a falar do tempo, do barulho, do elevador. Uma chatice, bem sei. Mas pior, ainda, é quando a reunião se atrasa, por falta de cloro.
- Gosto muito desse pijama.
- Eu também.
- Sabes o que é que diz aí?
- Não, pai.
- "Le premier à aller se coucher".
- Ah...
- Sabes o que quer dizer?
- Sei: "o primeiro gajo é coxo".
Portanto, a vida também é isto: levantas-te e...
A aproveitar o sol, para tratar da roupas dos indígenas, enquanto ouço bons programas de rádio. Claro que, se fosse um serviço público a sério, punham uns tipos a ajudar na lida da casa. Aposto que a BBC nos vem dobrar as meias. Mas, enfim, é o país que temos.
Nos tempos mais críticos da pandemia (que, convém lembrar, continua por aí) abusámos dos clichés: "eramos felizes e não sabíamos", "vai ficar tudo bem", "o novo normal", "vamos sair melhores da pandemia". O tempo limpa a memória e guardamos, invariavelmente, a parte melhor. Ouçamos "A mosca", que sintetiza o desejo de regressar à "vida normal" em, apenas, 30 segundos. Depois, como diria o escritor Mário de Carvalho, "Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto".
(para ouvir "A mosca" basta clicar na imagem)
O jornalista Adriano Miranda alertou, hoje, no Facebook: "Morreu o Sr. Francisco". O sr. Francisco é maior do que ele próprio. Primeiro, o seu retrato (uma obra de arte, do Adriano) correu o país. Depois, correu o mundo. O sr. Francisco tornou-se o símbolo dos incêndios de 2017: da tragédia, do sofrimento, do desespero; mas também da luta, da esperança, da vida. A jornalista Patrícia Carvalho detetou-lhe a "réstia de um sorriso" e contou a sua história no livro "Ainda aqui estou". O sr. Francisco não esteve sempre ali: na aldeia de Covelo, freguesia de Ventosa, concelho de Vouzela, distrito de Viseu. (As terras mais pequenas - penso agora - ocupam tão pouco espaço no mapa, que, para serem vistas, precisam de nomes mais extensos do que a aristocracia europeia). O sr. Francisco tentou ganhar vida e mundo, mas, infelizmente, não foi correspondido. Voltou para a terra; construiu uma casa, onde viveu com a mulher, uma tia e uma ausência de filhos; semeou "umas batatas" e plantou "umas cebolas". Em 2017, quando as chamas lhe arrancaram do seu sono de viúvo, nessa noite quente de outubro, percebeu que nada havia a fazer. Fechou-se em casa, bebeu aguardente "para andar assim meio atordoado", temeu o pior, esperou pelo menos mau. Sobreviveu, para contar.
A maioria dos jornalistas vive rodeada de "cenários" e "teatros de operações". Alguns, porém, conseguem "mergulhar" nos cenários, habitados de personagens e figurantes, e resgatar gente. O sr. Francisco era um símbolo, sim, mas também era gente. Aliás, era, sobretudo, gente. Gente com vida própria: "uma vida do caraças", disse ele, "uma vida do caraças".