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No dia da morte de Fausto, recupero este texto, com cerca de ano e meio.
"Não se deve confundir", diz a expressão, "a obra-prima do mestre, com a prima do mestre-de-obras". "Por este rio acima" é uma obra-prima e acaba de fazer 40 anos. Baseado nas viagens de Fernão Mendes Pinto, as letras do disco são um mergulho nas profundezas dos descobrimentos. Por vezes, o mergulho exige apneia: cheira a morte, a doença, a carne queimada e esventrada. Não há, aqui, qualquer exaltação ao lado bravo, guerreiro e conquistador - apenas, o lado escuro dos descobrimentos. A riqueza das letras é tão grande que acabou por secundarizar, involuntariamente, a riqueza das canções, dos arranjos, dos instrumentos. As percussões tradicionais portuguesas, mas também as tablas e as baterias; a guitarra portuguesa e o cavaquinho, tal como o alaúde e a viola de gamba; o piano acústico e os sintetizadores; as cordas e os instrumentos de sopro. Tantos instrumentos que acompanham a voz e a viola acústica de Fausto, omnipresentes, que, ora nos levam para paisagens exóticas e longínquas; ora nos trazem de volta a Portugal, com ritmos e melodias que nos são familiares. Obra-prima.
"Por este rio acima" é um álbum duplo, denso, conceptual, com um pequeno "libreto" ilustrado no interior. A viagem cresceu para trilogia, de forma tão avassaladora que (porventura) acabou por se sobrepor à obra integral de Fausto, que pode/deve ser (re)descoberta. Estamos perante um caso em que não se confundiu "a obra-prima do mestre, com a prima do mestre-de-obras", mas em que, por causa da obra-prima, se poderá ter deixado de reconhecer, devidamente, o mestre que a criou.
O jovem timoneiro começou a ficar ansioso. Descíamos, de barco, o grande rio. Uns atrás dos outros. Depois de lutarmos contra a violência de um rápido, perdemos o último barco de vista. "Moço, o que é que está acontecendo?" "Um momento, silêncio", responde o jovem , de ouvido atento e com um olhar de lince, a varrer o rio. "Moço, você está-me deixando nervoso". O timoneiro fez ouvidos de mercador. "Tudo à esquerda". "Moço, eu exijo saber o que está acontecendo". Segreda-me ao ouvido "Vou ter que te pedir uma coisa". "Eu exijo..." "Você não exige nada", diz o timoneiro, "Eu é sou responsável pela vossa segurança, eu é que exijo." Aponta para mim. "Ele toma conta do barco. Você fica quieta e fica calada." Pisca-me o olho e sai do barco, correndo ligeiro pela margem. Volta passado uns minutos. "Está tudo bem", diz ao entrar no barco, "eles vêm aí". "Ai, que susto, minino. Nunca pensei, que..." "Pois não, não pensou. Agora, peço-lhe, não volte a atrapalhar. E, sobretudo, não exija". Lembrei-me desta história, mas já nem sei bem porquê.
Máscara e óculos. Vejo tudo enevoado. Às vezes, fico muito irritado. Outras vezes, até gosto. Parece que estou em Londres. Em tempo de pandemia, usar óculos e máscara é o cosmopolitismo possível.
Acampámos em casa dos avós. Somos assim: uma família sempre pronta a armar barraca.