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"A rádio dá a ver. Pode parecer obsceno, mas muitas vezes a rádio consegue dar a ver com maior eficácia, com maior verdade, do que a televisão." Fernando Alves, no Público. Estou a ver a rádio, no jornal.
Esta entrevista de Joana Marques, ao Expresso, anda na minha cabeça, há uma semana. Na capa da Revista, lê-se que Joana vem de uma família de intelectuais. Não é a primeira, nem será a última. Muitas figuras, com destaque no espaço público nacional, vêm de famílias de intelectuais. Geralmente são, também elas, intelectuais. E há, também, muitos casos de intelectuais que vêm de famílias de operários, agricultores ou comerciantes. É o resultado de uma longa aposta na educação, que tem contribuído para aquilo que, geralmente, se designa como "mobilidade social". Uma mobilidade "para cima", que Joana Marques terá colocado em causa. Em casa, a mãe de Joana dedicava-se às traduções, o pai à história, o irmão à filosofia. Joana dedicava-se a ver programas de Teresa Guilherme. Ainda é assim. O pai (João Pedro Marques) escreve "romances históricos, e grandes" que ela não lê "e ele sabe". E eles, em casa, não percebem bem quem são as pessoas, em causa, que ocupam os programas de Joana. É certo que, a dada altura, Joana confessa que "gostava de" se sentir "um bocadinho menos inculta"; mas, logo a seguir, confessa que não gostou muito de andar na universidade porque "parecia que estava em casa!". Não haverá muitos casos assim, em Portugal. Mas creio que se irão tornar, cada vez mais, comuns. Poderíamos pensar que é uma tragédia, mas é comédia.
Agora a série (ui, linguagem inclusiva!). Os modernos estavam tão embrenhados na discussão sobre qual a série mais "cool" da actualidade - "Sucession" ou "Rabo de Peixe" -, que passaram ao lado da série do momento - a série "E". Alerta "spoiler": não vale a pena puxar atrás ou subscrever porque já acabou. Mesmo. (Eu sei que não é comum nas séries). Segue-se a série "F".
- Quem é que escolheu este canal?
- Não sei. Queres que peça para mudar?
- Está bom. Não há paciência para aquelas coisas no parlamento.
- Pois.
- Acham, mesmo, que os portugueses têm paciência para aquilo? Os portugueses querem é saber da economia, do emprego, da educação, da saúde...
- O que é que estás a fazer?
- Vou só espreitar o telefone, porquê?
- Porque deves ser espanhol.
- Não percebi.
- "Os portugueses querem é saber da economia e do emprego..."
Esta série nova - CPI TAP - deve ser boa, porque tem passado em vários canais. Não tenho visto, mas deteto-lhe um defeito. O elenco está a mudar muito. E, isso, dificulta o acompanhamento da história e a ligação aos personagens.
Saímos do cinema, a meio do filme. "Irreversível", de Gaspar Noé, tinha sido anunciado como um "filme-choque" (coisa que, normalmente, não me agrada), mas estava coberto de boas críticas e de recomendações de amigos. Tentámos a nossa sorte, numa tarde de domingo. O filme avançava, em espiral, praticamente sem imagem, mas explicitando tudo em som: sexo, violência e terror. Confirmou-se: "filme-choque". Saímos, a meio, atordoados, com a cabeça e o estômago às voltas. Saímos para a avenida. Caminhámos, vagarosamente. O ar fresco e o bom tempo foram-nos recompondo. Olhámos um para o outro, à porta do museu: uma retrospetiva de um artista contemporâneo. "Entramos?". Entrámos. "Artista provocador, que aborda a sensualidade e a sexualidade, de forma crua, irreverente e provocadora. Um olhar inquietante e blá, blá, blá, e blá, blá, blá". Instalou-se, de novo, a sensação de enjoo. Voltámos para casa. Comemos em frente à televisão, na companhia de um programa de canções. Parece que um dos concorrentes tem uma burra. "Tens uma burra?", pergunta a Catarina. "Tenho". "Eu também. Podíamos juntar as duas, para ver se acasalavam". Rompemos numa gargalhada. "Ai, que parvoíce", diz a Catarina, "se são duas burras, não podem acasalar". Voltámos a rir. Tanto e tão alto, que (soubemos depois) deixámos a vizinhança preocupada. Não sei se estão a ver o filme: ligar a televisão foi a decisão mais inteligente do dia. Fomos salvos pela burra da Catarina.
Pelé morreu. Na rádio, na televisão, nos jornais, lembram o epíteto: "rei". O rei Pelé. O meu coração republicano lembrou-se, no entanto e de imediato, que Pelé foi ministro do desporto, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Um homem negro, pouco escolarizado, vindo da pobreza, catapultado (pelo futebol) para o estrelato mundial, era, agora, ministro. Poucos anos depois, outro negro famoso tomou posse como ministro (desta vez, da cultura): Gilberto Gil. Não faço ideia se foram bons ministros, mas não posso deixar de pensar o quão inspirador terá sido, para tantos jovens negros e pobres, ver dois dos seus serem empossados no cargo de ministros. Aqui, os dois posam para a fotografia. Há um terceiro, na fotografia: Caetano Veloso. Um "negro quase branco", que nunca foi ministro, mas que, há muito, reina no meu coração republicano.
À semelhança de milhares de portugueses, também eu fui levantando os olhos em direção aos ecrãs de televisão. Presumo, no entanto, que, enquanto muitos procuravam imagens de Mourinho, eu procurei Santana Lopes. Lembram-se? Eu vou recordar. Há uns anos, Santana Lopes foi à televisão, falar do futuro do país e do PSD, mas foi interrompido para um direto. Mourinho estaria a chegar a Portugal, a bordo de uma aeronave, vindo do planeta Chelsea. Fez-se o direto e voltou-se à entrevista. Quer-se dizer: tentou-se. Porque Santana aproveitou a deixa, para ensaiar uma postura de Estado. "Está tudo doido?", perguntou. E perguntou bem. Enquanto ex-primeiro-ministro, impunha-se essa pedagogia. Eu próprio tentei esquecer-me que, antes de ser primeiro-ministro, Santana foi presidente... do Sporting. E que evitou (sempre e com todas as suas forças!) a mediatização da política. E nunca permitiu que a imprensa cor-de-rosa invadisse o seu coração cor-de-laranja.
Entretanto, o mundo mudou muito. As televisões deixaram de interromper ex-primeiros ministros, porque optaram por transmitir interrupções, ininterruptamente. Olho para os ecrãs e vejo tudo aos quadradinhos (as televisões, agora, têm mais quadradinhos do que a banda desenhada): imagens de comentadores no estúdio, em casa e no carro; imagens dos jornalistas em estúdio e no exterior; imagens do selecionador em ação e a sair de cena; imagens de carros e autocarros e aviões. Muitas, ao mesmo tempo. Sabemos que, na modernidade, o salvador não vem numa manhã de nevoeiro; vem num jato privado. "É assim que o país anda para a frente?", perguntava Santana Lopes. Bem perguntado. Santana, que, entretanto, voltou à Figueira da Foz, devia fazer a pergunta, de novo. Eu acho, sinceramente, que o país anda para a frente. Tem andado: sempre ou quase sempre. O problema é que somos demasiado bons a andar às voltas. E isso, nem sempre ajuda.