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Fogo no rabo

por Miguel Bastos, em 19.09.24

O autarca parece que tem fogo no rabo, mas não tem. Tem fogo na cabeça (é impossível não ter). E tem fogo nos pés. Estão protegidos, por um par de botas robustas. Usa as botas, para apagar as brasas. Usa a cabeça, para apagar as chamas. Chama os bombeiros, ao telefone. Chama a atenção, aos transeuntes. Uns, passam demasiado depressa. Outros, passam demasiado devagar. Outros, já não passam. A estrada foi fechada. A estrada foi reaberta. A estrada voltou a fechar. Não há helicóptero. Já há, mas nunca mais chega. Já chegou, mas não pode atuar. Não pode atuar, por causa do capacete de fumo. Ponha o capacete, senhor António, por causa do fogo. Tire a mota, senhor António, por causa do fumo. O autarca parece cansado. Nega estar cansado. Não tem tempo para o cansaço. Mas tem os olhos vidrados. E tem fogo na cabeça. Vai ser difícil, o rescaldo. Por mais água que ponha na cabeça

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Revolução

por Miguel Bastos, em 12.09.24

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Não abundam, os livros sobre música portuguesa. Rareiam, os que são realmente bons. É o caso deste: "A Revolução antes da Revolução", de Luís de Freitas Branco. Gostei, de imediato, do título e do conceito revelado. Já sabíamos que o 25 de Abril tinha sido lançado por uma canção - "E depois do Adeus", de Paulo de Carvalho - e confirmado por outra - "Grândola, Vila Morena", de José Afonso. Mas o autor vai mais longe: antes da revolução, propriamente dita, Portugal já tinha um vasto cancioneiro para a revolução.
 
Esse cancioneiro agrupa compositores, letristas e intérpretes. Agrupa, sim, mas também os divide. E não é, apenas, a divisão entre os jovens do rock e os velhos da canção romântica, ou dos baladeiros a desprezar, com igual intensidade, o "nacional-cançonetismo" e o rock "americanado". A divisão existiu, entre aqueles que achamos serem as "vozes de Abril": com José Mário Branco a recusar produzir um disco de "lamechices" de Adriano Correia de Oliveira; com Adriano a questionar as canções banais dos baladeiros; com Carlos do Carmo a duvidar da qualidade de interpretação de José Mário Branco; com Fernando Tordo a perguntar se Sérgio Godinho saberá o que é uma orquestração. Como se esta divisão, antes da Revolução, antecipasse a divisão, depois da Revolução.
 
Luís de Freitas Branco escolheu o ano de 1971, como o ano mais representativo desta "Revolução antes da Revolução". Afinal, foi o ano de "Cantigas do Maio", de José Afonso; de "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco e de "Os Sobreviventes", de Sérgio Godinho. Uma colheita "vintage". Foi ano de Ary dos Santos, no Festival da Canção; de Miles Davis, no Festival de Jazz de Cascais; de Elton John, no Festival de Vilar de Mouros. Um ano, em livro, dividido em 12 meses e 12 capítulos. Com Luís de Freitas Branco a definir os andamentos desta espécie de sinfonia de música popular: diversa, policromática, minuciosa, revolucionária. Bravo!

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Ilusão costeira

por Miguel Bastos, em 11.09.24

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 Até já

por Miguel Bastos, em 15.09.23

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Quando fez 60 anos, a norte, a minha RTP escreveu o nome dos seus trabalhadores na parede. O meu nome está lá. E não está só, está bem acompanhado. Tenho orgulho de ter o meu nome escrito naquela parede, no local onde trabalhei quase 8 anos. Vou continuar a trabalhar na Rádio e Televisão de Portugal, apenas mais longe desta parede. Portanto, não há motivo para dramas. Eu é que sou um lamechas, agarrado às pessoas e aos locais onde habito. Onde tenho habitado. Trabalhado. Se pensar bem, a minha casa continua a ser a mesma - a Rádio Pública - só mudo de turma. Já nos encontramos, no recreio. Até já.  

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Indivíduos

por Miguel Bastos, em 14.09.23

No fundo, o que são indivíduos?

São pessoas, como nós.

Só que usam o casaco pelas costas.

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A garota, sim

por Miguel Bastos, em 13.09.23

Sempre gostei da forma como os músicos brasileiros partilham canções, entre si. Cruzam géneros, épocas, estilos, gerações: nos discos, no palco e na plateia. Acredito que é desta forma que se cria um repertório comum. Tinha, portanto, inveja dos brasileiros. "Inveja da boa", como agora se diz. Em Portugal, durante muitos anos, os músicos e os públicos viveram de costas voltadas: os da clássica não se cruzavam com os da música popular, os baladeiros afastavam-se dos nacional-cançonetistas; os do rock desprezavam o fado. Claro que havia exceções, mas esse era o paradigma. Um paradigma que foi mudando, ao longo dos anos. Maravilhosa, A garota não tem-nos dado momentos de partilha de um repertório comum, que tanto pode passar pela MPB, como pelo hip-hop; por Portugal ou pelo Brasil; por canções de ontem e por canções de hoje. Aqui, uma vez mais, fá-lo de forma exemplar. Ainda por cima, na companhia de um artista brasileiro. É A garota, sim.

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11 de Setembro

por Miguel Bastos, em 11.09.23

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"Por uma arrepiante coincidência", sublinha Isabel Allende, "os aviões sequestrados nos Estados Unidos despedaçaram-se contra os seus objectivos numa terça-feira, 11 de Setembro, exatamente o mesmo dia da semana e do mês - e quase à mesma hora da manhã - em que ocorreu o golpe militar do Chile, em 1973. Este último foi um acto terrorista orquestrado pela CIA contra uma democracia. As imagens dos edifícios a arder, do fumo, as chamas e o pânico, são semelhantes em ambos os cenários."

 
Isabel Allende escreveu estas palavras, há 20 anos.
Augusto Pinochet fez um golpe de Estado, há 50 anos.
A democracia continua em perigo, todos os dias.

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Ouço vozes

por Miguel Bastos, em 08.09.23

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"Isto é muito estranho", disse a convidada, "porque eu estou a falar com o João Gobern, mas ele não está aqui". "Estou, estou", disse o João, "garanto-lhe que estou". "Eu vou explicar aos ouvintes", continuou a convidada, "eu estou no estúdio, em Lisboa, com a Margarida à minha frente, mas o João está no Porto. E eu tenho de ter uns auscultadores, na cabeça, para o ouvir. Isto é surreal!". "Não é nada surreal", pensei, "é rádio". A rádio convive, desde sempre, com vozes à distância. A pandemia trouxe a democratização/banalização (riscar o que não interessa) das vozes à distância. Mas elas fazem parte da história e da paisagem sonora da rádio. E, no caso português, da prática diária das rádios do serviço público. Esta semana, tenho "contracenado" com o André Santos, na Antena 3. Hoje, juntámo-nos, pela primeira vez, em estúdio. Aliás, nunca tínhamos estado juntos, fisicamente, no mesmo espaço. É "surreal"?! Não, não: é rádio.

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por Miguel Bastos, em 07.09.23

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- Comprei-te um livro.
- Ai, sim?!
- É do Paul Auster. Achei que estavas a precisar de ler ficção.
- Obrigado. Ele tem sempre uns livros pequenos, mas muito bons.
- Bom, não sei, mas pequeno não é de certeza.

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O progresso

por Miguel Bastos, em 06.09.23

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"Assim mesmo é que é! (Diz o progresso)", canta Vitorino, na "Leitaria Garrett". A canção, de 1984, foi um sucesso: falava de uma leitaria em concreto, em Lisboa. Mas não era difícil pensar noutras leitarias, espalhadas pelo país, ameaçadas pelos "patos bravos" da moda. A "minha" Leitaria Garrett ficava numa casa tradicional portuguesa, na principal avenida de Aveiro. Quando eu cantava a Leitaria Garrett, cantava a "Seletarte", com as suas "madames" e "empregaditas", espalhadas pelo rés do chão. No primeiro andar - sede do PCP - cantavam-se os amanhãs.
Até que os amanhãs chegaram. De uma penada, "o progresso" arrasou os azulejos artísticos, a serralharia decorativa e os vidros coloridos, da Vivenda Aleluia, cuja autoria é atribuída a Silva Rocha. O arquiteto assinou grande parte das casas que dão, à cidade, a fama de "Capital da Arte Nova". Só que a fama é efémera e não resiste ao "progresso". Outros valores se levantam: no caso, dez pisos e mais de 4 mil metros de construção - para habitação, comércio e serviços. Obrigado, progresso.

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