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Gosto de misturas. Gosto da música que nasce da mistura e que gera novas misturas. Em 1976, Vinicius de Moraes ("O branco mais preto do Brasil") e o seu companheiro, Toquinho, cruzaram o oceano, para se misturarem com a italiana Ornella Vanoni. Ornella é uma espécie de Simone "lá deles": uma cantora talentosa e carismática; diva da canção "leggera"; atriz de teatro e cinema; presença, assídua, na rádio e na televisão. Dona de um vasto repertório, Ornella abordou o cancioneiro de Vinicius e Toquinho, num disco que começa com "Senza Paura / Sem medo" e vai, sem medo, até ao fim. "La voglia, la pazzia, l'incoscienza, l'allegria" não é, no entanto, um desses discos típicos da moda "world music" que chegaria nos anos 90, somando instrumentos e sonoridades contrastantes. Este é um disco típico de Ornella - seguindo a tradição italiana e europeia - com a bossa e o samba, da dupla brasileira. E tudo soa fluído, escorreito e natural: a cantora italiana a sambar e os cantores brasileiros a cantarem em italiano (Vinicius foi diplomata em Itália, o que terá ajudado). A sensação de que já conhecíamos as canções é confirmada pelo facto de, efetivamente, já as conhecermos. Mas, ao mesmo tempo, tudo é fresco, tudo é novo e tudo é puro, como numa canção de Jarabe de Palo que diz que "No puro não há futuro / A pureza está na mistura". Foi assim, em 1976, e continua a ser. Ornella tem quase 90 anos. Há dois anos, gravou um samba. Ornella ainda é mistura, ainda é futuro.
Em Tóquio, um grupo de jovens quis tirar uma fotografia connosco. Foi em Shibuya - um bairro da moda, onde os jovens se costumam juntar. "You're so exotic", dizia a rapariga japonesa de cabelo cor-de-rosa, top com purpurinas, mini saia leopardo, meias de renda e sapatilhas. "Exotic? Quem, nós?!", perguntámos. Nós, exóticos pela primeira vez. E tirámos uma foto. Uma "purikura" (foto tipo passe, autocolante), que o tempo ainda não era de "selfies" e os telemóveis ainda não eram inteligentes. Eramos exóticos, sim: europeus, do sul - baixos, morenos, cabelos ondulados, narizes grandes. Aos nossos olhos, eles também eram, claro. Olhos que, por sua vez, eles consideravam do mais "exotic" que há. Lembro-me que, nessa noite, fomos dançar para uma discoteca que passava, sobretudo, música de inspiração brasileira: samba e bossa nova, misturada com jazz e música eletrónica de dança. Dançámos, juntos, com os jovens modernos de Shibuya. Eles porque era "exotic". Nós porque - pela primeiro vez, em vários dias - nos sentíamos em casa, estando no centro de Tóquio. O que, também, acaba por ser exótico.
"Eu vou botar um pouquinho de sotaque, um pouquinho só", disse Vinicius de Moraes, antes de oferecer, a Amália, o fado "Saudade do Brasil em Portugal". Foi registado, em 1970, num disco conjunto. Passaram mais de 50 anos, e Caetano (um eterno apaixonado por Amália e pelo fado) repete a gracinha. Bota um sotaque para cantar "Você-Você", com a maravilhosa Carminho - que já cantou o tema de Vinicius e está habituada a cantar com os deuses. A canção está aqui, com um vídeo a registar o momento, mas o disco "Meu coco" merece ser ouvido, de fio a pavio. Começa por nos cantar que "O português é um negro dentre as eurolínguas", para (espero não estar a dar com a língua nos dentes) nos levar aos mais variados "brasis", até desembarcar em "Você-você". Não é, no entanto, o fim da viagem. Depois de um "quase fado", com o bandolim a fazer de guitarra portuguesa, chega a certeza de que "Sem samba não dá". A chegar aos 80 anos, o mais jovem de todos nós, dá-nos um "best off" de inéditos: intemporal e contemporâneo, ousado e familiar. Caetano dá-nos uma obra prima. A obra prima do mano. O mano Caetano.
A Filarmónica de Berlim tem samba no pé? Tem, pois! Na realidade é um "choro", que se deve dançar com a alegria de outros carnavais. Claro que ter um maestro como Daniel Barenboim - um judeu de origem russa, nascido em Buenos Aires e cheio de música e de mundo - ajuda a transformar qualquer pé-de-chumbo num Rei Momo.
“Samba, como na dança”, diz a certa altura o personagem principal, a sorrir. Samba não tem muitos motivos para sorrir. É um emigrantes senegalês, há mais de 10 anos em França, ilegal. Não tem contrato de trabalho, porque não tem residência fixa. Não tem residência fixa, porque não tem contrato de trabalho. O absurdo de milhares de emigrantes na Europa.
O filme é sobre a vida de Samba, dos que vivem como ele, dos que o tentam ajudar, dos que exploram o seu trabalho, e dos que o tentam apanhar. Todos vivendo e agindo, segundo regras absurdas.
O filme fala de tragédias, mas tem um tom ligeiro. Leio críticas que desaprovam o seu tom de comédia romântica. Não é alternativo que chegue? Pelos vistos, não. Mas não tem explosões, pistolas, perseguições de carro. Nem mulheres fatais, heróis e vilões. Uma raridade no cinema.
Este é um filme com uma história, com actores, com pessoas. Tem um tom ligeiro que me fez sorrir e rir, com gosto.
"Samba" dança na corda bamba, como a canção dos Clã. E não cai.