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"Ai, a gente já não pode ouvir falar da guerra!" A Dona Madalena leva a mão direita ao coração. Na esquerda, leva o saco das compras. "Só de pensar naquela gente toda a sofrer." Faço que sim, com a cabeça. "Já viu, havia de nos calhar isto, depois da pandemia". Ainda abro a boca para dizer "Depois da pandemia, que é como que diz". Na verdade, os números da Covid estão a subir, só que se fala menos do assunto. E a Síria não está melhor. Nem o Iémen, nem o Afeganistão, nem o norte de Moçambique. A crise climática continua e os plásticos continuam a acumular-se nos oceanos. A fome não acabou em África. É, por isso, que cada Miss Mundo, continua a desejar a paz e a dizer que não gosta da inveja e da mentira. Podia ter dito isto tudo à Dona Madalena, mas o peso que carrega no peito e no saco das compras já me parece demasiado.
Ouvi o realizador belga, a dizer que, na Síria, o som é muito importante. A pessoas habituaram-se a ter os ouvidos alerta, para perceber se há guerra nas redondezas. Para perceber a que distância podem estar os tiroteios, os carros de combate, os bombardeamentos. Se podem sair de casa, ou se é melhor abrigarem-se.
As pessoas podem tentar ver pela janela. Mas serve de pouco. Os olhos pouco alcançam. Talvez a rua, os vizinhos da frente, o parque das traseiras. E se virem gente aos tiros e bombas a cair, é porque já é tarde de mais. O ouvido é, portanto, fundamental.
Ora, eu, que sou todo ouvidos, a viver numa sociedade dominada pelas imagens, achei isto muito curioso. E deixei-me ficar a ouvir, deliciado, a reportagem sobre o filme "Na Síria", de Philippe Van Leeuw. E, depois, o programa inteiro. O Cinemax, da Antena 1, com edição de Tiago Alves, é um programa sobre cinema feito, apenas, com sons. Sons que nos fazem ver, por antecipação. Por antecipação, como na Síria.
Goethe (escritor alemão) e Ghouta (região da Síria) pronunciam-se de forma semelhante. Não é a única semelhança. No Fausto, de Goethe, e na guerra, de Ghouta, vendeu-se a alma ao diabo.
No meio do entusiasmo à volta de candidatura de Guterres à liderança da ONU, houve conjunto de pessoas “cosmopolitas” que resolveu criticar os “patrioteiros”. É verdade, o futuro de Portugal não depende da eleição de Guterres. Ter Guterres, como secretário-geral da ONU, não vai provocar a recuperação das finanças públicas, nem o crescimento económico, nem vai baixar o desemprego. Não vai aumentar a qualidade da governação, nem da oposição. Não vai acabar com o crescimento da extrema direita na Europa. Não vai decidir as eleições nos Estados Unidos. Não vai acabar com as brincadeiras perigosas da Coreia do Norte. Nem com a guerra na Síria. Mas se for búlgaro, alemão ou russo, também não.
Os “cosmopolitas” não acham relevante ter, pela primeira vez, um português à frente das Nações Unidas. O que é importante é que ganhe o melhor. Mas não dizem qual é o melhor. Não importa se Cristiano Ronaldo é português. Nem Pessoa, Camões, Amália, Saramago, Damásio, Vasco da Gama. Porque o mundo é um só. Porque são “cosmopolitas”. Os “cosmopolitas” não são bem cosmopolitas. São apenas parvos.
“A vida sem viver é mais segura”, cantava, a partir de Paris, José Mário Branco. A canção chama-se “Perfilados do medo” (poema de Alexandre O’Neil). Foi registada, em 1971, num disco chamado “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mudaram-se os tempo, é certo, mas o medo ficou. Ou, pelo menos, vai e volta. Paris tem medo. Bruxelas tem medo. Berlim, Londres e Madrid também têm medo. Toda a Europa tem medo.
Por isso, escrevi, aqui, que os terroristas vencem sempre. Não precisam de disparar. Basta meterem medo. Ouvi, esta manhã, na Antena 1 a descrição de Bruxelas, uma cidade paralisada. E ouvi soluções mágicas de ouvintes. Com voz de homem e atitude de macho, ditaram: é preciso bombardear o Estado Islâmico, na Síria. Pode ser uma acção necessária. Mas, não percebo como é que isso impede os terroristas de atacar Paris ou Bruxelas. É que os terroristas estão cá. Muitos deles, são de cá. Portanto, o assunto, não se resolve “lá”. Nem se resolve, passando de “Rebanho pelo medo perseguido” a fera que ataca sem sentido.
A minha irmã vive fora de Portugal há muitos anos. Num destes verões, olhou para meia dúzia de amigos e familiares e exclamou: “parecem os meus amigos árabes!”. Cabelos escuros, bigodes, pele crestada pelo sol. De facto, não é só o Fernando Ruas que parece o Saddam. Há muitos portugueses que parecem.
O “árabe” que me serviu um café, esta manhã, sabe disso. A pele é escura, o (pouco) cabelo está rapado e usa barba. Mas acha que precisa de mais sol. “Faço uns dias de praia e depois peço ao governo para me dar uma casa, como os sírios”, graceja. Em Portugal, andamos assim. Eternamente divididos, entre os que acham que o Estado nos deve dar tudo e os que acham que andam todos a viver “à conta” do Estado.
Este “árabe” é do segundo grupo. Usa umas pulseiras de cabedal e uma camisola dos Ramones “à moderna”, mas é antigo. Muito antigo. Poderia explicar-lhe que não basta ser moreno para ser sírio. É preciso ter família morta, violada, a casa destruída e outros pormenores. Mas não fui a tempo, porque, logo a seguir, ele disse: “Vou sair para apanhar ar. Já volto”. Pois, eles também saem. Mas não voltam.
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, deu ordem ao exército para atirar sobre os refugiados. Uma “Licença para matar”, como o James Bond? Até tremi.
Bem, o agente 007 só usa a sua “Licença para matar” porque existem uns maus, que querem roubar, enriquecer, matar e controlar o mundo. Olhando para os refugiados, que tentam atravessar a Europa, é difícil ver um exército de maus. É ao contrário, senhor Orbán: eles fogem dos maus.
Depois, Bond está sempre do lado certo, com o estilo certo. Veste bem, caminha com elegância, conduz como um piloto de Fórmula 1, dispara como um sniper, fala como um líder, luta como um herói. O senhor Orbán não tem nada disto. Os seu fatos e as suas leis europeias não conseguem escondem os seus tiques autoritários, xenófobos e anti-democráticos.
No fim, descobrimos que não há “Licença para matar”. Só para atirar: num braço, numa perna ou coisa assim. Saio do James Bond e entro diretamente no universo de Raúl Solnado. Na sua chamada para “Vachintom”, Solnado oferecia os serviços do exército de Ranholas que tem “um soldado baixinho que, em vez de disparar, insulta. Bem, ele não mata. Mas ele desmoraliza muito.” O Solnado faz falta à Europa.