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Roubaram as sapatilhas a Fabrice. Caminhou seis horas, até à fronteira. Chegou à Polónia, descalço, com os pés inchados, com fome e sinais de hipotermia. Fábrice é congolês. Foi observado por Fernand, médico israelita. A história é contada por um português: Luís Peixoto, jornalista da Antena 1. A humanidade: no seu pior; e no seu melhor.
Sabemos muito pouco sobre o Afeganistão. Um país devastado, há várias décadas. Uma espécie de aldeia gaulesa, que resistiu aos poderosos exércitos da União Soviética e dos Estados Unidos. Os talibã são, também, uma espécie de lusitanos, mas mais disciplinados: ou governam, ou não se deixam governar. Não é, no entanto, preciso perceber muito de Afeganistão, para perceber o que aí vem. Os talibã reconquistam o território, a grande velocidade, com a tomada militar de mais de uma dezena de capitais de província. Esta madrugada, caiu a segunda maior cidade do país: Kandahar. A capital, Cabul, está ameaçada. O governo tenta, ainda, salvar a pele, com acordos para a partilha do poder. Os soldados americanos estão de saída, mas, o governo enviou três mil soldados, para retirar o pessoal diplomático de Cabul. Outros países seguem o exemplo. As Nações Unidas pedem, aos países vizinhos, para abrirem as fronteiras. Mais de 3 milhões de refugiados já abandonaram o Afeganistão. Está tudo pronto para a desgraça. Estejamos prontos para as lágrimas de crocodilo.
[Foto: Reuters]
Já foi o rosto da crise da Europa. Mas, entretanto, vieram outras crises. Os refugiados: a caminho da Europa. O Reino Unido: a sair da Europa. Le Pen: a crescer, contra a Europa. A Rússia: a lançar Trump, por cima da Europa. E Trump: sem saber o que é a Europa. Merkel sabe, claro. E é, cada vez mais, a afirmação da Europa.
No meio do entusiasmo à volta de candidatura de Guterres à liderança da ONU, houve conjunto de pessoas “cosmopolitas” que resolveu criticar os “patrioteiros”. É verdade, o futuro de Portugal não depende da eleição de Guterres. Ter Guterres, como secretário-geral da ONU, não vai provocar a recuperação das finanças públicas, nem o crescimento económico, nem vai baixar o desemprego. Não vai aumentar a qualidade da governação, nem da oposição. Não vai acabar com o crescimento da extrema direita na Europa. Não vai decidir as eleições nos Estados Unidos. Não vai acabar com as brincadeiras perigosas da Coreia do Norte. Nem com a guerra na Síria. Mas se for búlgaro, alemão ou russo, também não.
Os “cosmopolitas” não acham relevante ter, pela primeira vez, um português à frente das Nações Unidas. O que é importante é que ganhe o melhor. Mas não dizem qual é o melhor. Não importa se Cristiano Ronaldo é português. Nem Pessoa, Camões, Amália, Saramago, Damásio, Vasco da Gama. Porque o mundo é um só. Porque são “cosmopolitas”. Os “cosmopolitas” não são bem cosmopolitas. São apenas parvos.
Dizem que Churchill foi um dos pioneiros da ideia de uma Europa unida. Era bom para a paz, para a economia, para a solidariedade. O projeto teria o apoio do Reino Unido, que, percebeu-se depois, não se incluía na Europa. Inclui-se, apenas, por exclusão de partes. Porque não é América, nem África, nem Ásia, nem Oceania. O Reino Unido sempre esteve com um pé dentro e outro fora da Europa. Por vezes, parece que faz bem. Quando, por exemplo, resiste à burocracia europeia que quer definir o tamanho das maçãs. Mas, outras vezes, é irritante. Quando faz valer o seu peso para negociar excepções, que não são permitidas a mais nenhum Estado.
Agora, a propósito da crise económica, da pressão migratória e do crescimento da direita radical, Cameron resolveu referendar a permanência do Reino Unido na europa. Vai-se votar “In ou “Out”. A coisa anda ao sabor da agenda mediática. Aparecem mais uns refugiados, cresce o “Out”. Fazem-as as contas ao impacto económico, sobe o “In”. Farage discursa de forma apaixonada e povo quer estar “Out”. Um louco mata uma deputada trabalhista, estamos “In”.
Independentemente do resultado ser “In” ou “Out”, já há um resultado que é certo. O Reino Unido está em tendência “down”, ou seja para baixo. E, com eles, descemos todos.
A minha irmã vive fora de Portugal há muitos anos. Num destes verões, olhou para meia dúzia de amigos e familiares e exclamou: “parecem os meus amigos árabes!”. Cabelos escuros, bigodes, pele crestada pelo sol. De facto, não é só o Fernando Ruas que parece o Saddam. Há muitos portugueses que parecem.
O “árabe” que me serviu um café, esta manhã, sabe disso. A pele é escura, o (pouco) cabelo está rapado e usa barba. Mas acha que precisa de mais sol. “Faço uns dias de praia e depois peço ao governo para me dar uma casa, como os sírios”, graceja. Em Portugal, andamos assim. Eternamente divididos, entre os que acham que o Estado nos deve dar tudo e os que acham que andam todos a viver “à conta” do Estado.
Este “árabe” é do segundo grupo. Usa umas pulseiras de cabedal e uma camisola dos Ramones “à moderna”, mas é antigo. Muito antigo. Poderia explicar-lhe que não basta ser moreno para ser sírio. É preciso ter família morta, violada, a casa destruída e outros pormenores. Mas não fui a tempo, porque, logo a seguir, ele disse: “Vou sair para apanhar ar. Já volto”. Pois, eles também saem. Mas não voltam.
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, deu ordem ao exército para atirar sobre os refugiados. Uma “Licença para matar”, como o James Bond? Até tremi.
Bem, o agente 007 só usa a sua “Licença para matar” porque existem uns maus, que querem roubar, enriquecer, matar e controlar o mundo. Olhando para os refugiados, que tentam atravessar a Europa, é difícil ver um exército de maus. É ao contrário, senhor Orbán: eles fogem dos maus.
Depois, Bond está sempre do lado certo, com o estilo certo. Veste bem, caminha com elegância, conduz como um piloto de Fórmula 1, dispara como um sniper, fala como um líder, luta como um herói. O senhor Orbán não tem nada disto. Os seu fatos e as suas leis europeias não conseguem escondem os seus tiques autoritários, xenófobos e anti-democráticos.
No fim, descobrimos que não há “Licença para matar”. Só para atirar: num braço, numa perna ou coisa assim. Saio do James Bond e entro diretamente no universo de Raúl Solnado. Na sua chamada para “Vachintom”, Solnado oferecia os serviços do exército de Ranholas que tem “um soldado baixinho que, em vez de disparar, insulta. Bem, ele não mata. Mas ele desmoraliza muito.” O Solnado faz falta à Europa.
Primeiro, a Europa fez de conta que não viu. Depois, era um problema dos países do sul. Quando os refugiados chegaram, em massa, a França e à Hungria a coisa começou a mudar. Em França, os refugiados perceberam que a “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” tem dias e que, do outro lado de Calais, não há oásis, só mau tempo no canal. Na Hungria, deram de caras com um líder político que, de urbano, só tem o nome. Orban ergueu um muro, esquecendo que já esteve do outro lado de um.
Cameron não se distingue muito. Como Orban, gosta de estar com um pé dentro e outro fora da Europa e lembra que o seu reino não tem espaço para Schengen. Angela Merkel tem estado sozinha e também veio dizer “já Schengen”. A poderosa Alemanha não consegue convencer os parceiros europeus a receber refugiados e também fecha as fronteiras.
A Europa não tem memória, nem pensamento, nem discurso, nem liderança. Tem porteiros.
“Já Schengen” é a resposta da Europa à Crise dos Refugiados. O último que feche a porta.
Durante as férias, temos mais tempo para conversar. Com a nora do Senhor Rodrigues, por exemplo. A conversa passou por Londres, onde a senhora viveu. Foi emigrante.
Alguém falou do ambiente cosmopolita de Londres: diferentes etnias, religiões, cores de pele, orientação sexual, línguas, sotaques. O postal turístico de uma grande cidade europeia. Mas, rapidamente, a coisa evoluiu para os que não se querem integrar, que não trabalham, que vivem da segurança social, que se reproduzem como coelhos, etc. Numa altura em que o Eurotúnel está entupido e Calais rodeado de arame farpado, eis o emigrante, com um discurso racista.
Infelizmente, não surpreende. Há uns anos vi emigrantes portugueses em França, numa manifestação de apoio à Frente Nacional. “Então mas os senhores apoiam um partido que é contra os emigrares?”, perguntava um repórter da RTP. “O Le Pen gosta dos portugueses. Ele não gosta é dos ‘magrebes’, que vêm para cá e não querem trabalhar”. Pois, é sempre assim. São sempre os outros.
Será que a imagem de uma criança morta a dar à costa, na Turquia, muda alguma coisa?