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Dia de Portugal. Este dia, que já foi da raça, é, agora, das Comunidades. O Presidente vai ao encontro delas, espalhadas pelo estrangeiro. Todos os anos, voa para um sítio diferente. Mas há, também, novas comunidades a nascer. Pessoas que vieram de fora, mas que, também, já são de cá. Falam português, comem bacalhau e têm filhos que, por vezes, são tão (ou mais) portugueses do que dos países dos pais. E que se sentem tão portugueses, como os meninos que são filhos de pais que nasceram na Beira, no Minho ou no Alentejo. Hoje, ouvi meninos a cantar a história de Portugal e das suas várias regiões. Varri o palco, com o olhar, e vi meninos de várias origens. Pensei nos que têm origens na Rússia, na Bielorrússia ou na Ucrânia. E pensei que Portugal é um Dia Bom.
Lá em casa, tivemos sempre problemas com o "raça". Assim mesmo, com artigo masculino. Perante a minha irrequietude, a minha mãe dizia: "o raça do rapaz não pára quieto". Ou "o raça do rapaz nunca está calado". O "raça", portanto. O "raça", dizem os dicionários mais nobres, é uma expressão popular para exprimir descontentamento, irritação, contrariedade.
Lá em casa, o "raça" da torneira não funcionava, apesar dos esforços do meu pai. O "raça" do vizinho estacionava a camioneta à nossa porta. E o "raça" do forno queimava o assado de domingo. O "raça" levava sempre com a culpas. A raça também.
No livro "Brasil: Uma biografia", as historiadoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling contam-nos que, no século XIX, o "raça" dos brasileiros estavam preocupados com a raça. Para "purificarem" a raça brasileira, "ameaçada" pela sobrevivência dos índios e pela proliferação dos negros, os brasileiros queriam importar pessoas brancas e louras da Europa. Que "raça" de ideia!
Na Bósnia dos anos de 1990, a coisa foi mais difícil. Sem negros, nem índios, era preciso distinguir o "raça" de um eslavo do sul, do "raça" de outro eslavo do sul. Neste caso, a religião, explica Tim Butcher no livro "O Gatilho", serviu para dividir o que Deus uniu. E, depois de divididos, foi o "raça". Chamaram "limpeza étnica" à matança mais suja, levada a cabo na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial.
"Raça" é isto: na Cova da Moura ou na cidade de Mossul. E é o raça.
Há um mês, celebrámos o 10 de Junho. Em tempos, foi o dia da raça. Já não é, e ainda bem. Sobrinho Simões começou o seu discurso, por aqui. Não temos pureza de raça - disse ele, mas somos especiais. Temos uma herança genética, que acolhe e dissemina os genes da humanidade. Porque temos genes europeus, ameríndios, africanos. Porque temos uma herança judaica e árabe. Porque navegámos, colonizámos, emigrámos. E, com isso, espalhámos genes e (até) doenças.
Somos especiais - disse Sobrinho Simões, no Dia de Portugal. Porque temos dado passos de gigantes: na educação, na saúde, na ciência, na inovação. Formámos novas elites. Mas, o privilégio - considera, tem de ser acompanhado de responsabilidade. Temos que ser exemplares, de cima para baixo.
Uma semana depois do discurso do médico, professor, investigador e patologista, começaram os fogos em Pedrógão Grande. Fiquei a pensar em Sobrinho. É preciso ouvir Sobrinho, neste país em que andamos sempre “ó tio, ó tio”.
O dia 10 de Junho é Dia de Portugal. E de Camões. Ah, e das Comunidades Portuguesas. Porque é que em Portugal complicamos tudo? Um feriado que comemora Portugal, Camões e as Comunidades Portuguesas; comemora tudo, em geral, e nada, em particular. Parece que nasce de uma indecisão: “Então o que é que vamos comemorar Portugal ou Camões?”; “Não sei, o melhor é comemorar os dois”.
Um feriado para celebrar Camões terá sido ideia dos republicanos. Camões representava a glória de Portugal. Salazar, que adorava evocar as grandes figuras, manteve as comemorações. Mais tarde, juntou-lhe Portugal e a sua Raça, que se espalhava do Minho até Timor. Quando essa Raça começou a ser questionada, estoirou a guerra colonial e passou-se a evocar, também, as Forças Armadas.
Depois do 25 de Abril, a "Raça" foi substituída pelas “Comunidades”. Mas, o tipo de comemorações não mudou. Devia ser uma festa dos portugueses, mas a maioria não dá por nada. Restam os que discursam; os que desfilam na parada; os que recebem honrarias; os que analisam o discurso do Presidente da República e os que andam a chatear o Camões.