Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Antes, durante e depois da revolução. A saga de uma família, ou de um país? Ou de vários países, dentro de um mesmo país? Esse país, ainda existe?
"Revolução", de Hugo Gonçalves, conta a história de três filhos, muito diferentes entre si. A mais velha, militante do PCP, foi presa pela PIDE. Abandona o PCP, para se radicalizar, à esquerda. A irmã tem um perfil conservador, que parece conviver melhor com o salazarismo, do que com os tempos conturbados do PREC. O mais novo vive num mundo interior e hedonista, com contactos esporádicos com a irrealidade daqueles anos. Os três são filhos de uma mulher, aparentemente conservadora, outrora mãe solteira, que ascende socialmente pelo trabalho e pelo casamento com um homem de hábitos aristocratas e sobrenome estrangeiro. "Storm" é um nome que antecipa a tempestade perfeita, num país prestes a rebentar - pelas costuras e pelas bombas da extrema-esquerda, das Brigadas Revolucionárias, e da extrema-direita do ELP - Exército de Libertação de Portugal.
Confesso que, ao fim das primeiras páginas, dei por mim a desejar mais literatura e menos Hollywood. A linguagem, o ritmo, a estrutura narrativa - com vários coisas a acontecer ao mesmo tempo e "flashbacks" e "fast fowards" - começavam a irritar-me. Afinal, queria ler um livro. Não queria ver um filme, nem uma série. Acabei a ler um país: trágico, cómico, violento, complexo, contraditório. Um país que continuo a descobrir. Que permanece por descobrir.
- Pai, ainda falta muito para chegarmos?
- Um bocadinho.
- Podemos fazer qualquer coisa, para passar o tempo?
- Podemos fazer rimas.
- Começas tu?
- Pode ser: Vamos para o norte / Ou vamos para o sul
- Ahhhh... hummm...
- Desculpa, filho, não deve haver muitas palavras a rimar com "sul".
- Já sei. Podes repetir?
- Sim. Vamos para o norte / Ou vamos para o sul.
- Vamos para a praia / Ou para a swimming pool.
Viu, Godinho? Se um dia destes, precisar de alguém para ajudar nas letras...
(que, como sabemos, não é o seu forte...)
- Acho que é típico desta geração.
- Se calhar...
- São muito focados nos estudos, mas, depois, esquecem tudo o resto.
- Pois...
- São muito pouco desenrascados e faltam-lhes competências sociais.
- Tenho reparado nisso.
- A minha irmã, por exemplo, quando está a estudar, não faz mais nada. Percebe? Eu, quando era estudante, andava na Associação de Estudantes, saia à noite, fazia as coisas de casa... Não sei, no nosso tempo...
- No "nosso tempo"?!
- Bem, o Miguel deve ser um bocadinho mais velho do que eu.
- Só um bocadinho. Podia ser seu pai.
- Ah, agora é que estou a ver a sua idade, na ficha clínica. Desculpe.
- Ora essa, obrigado por me incluir "no seu tempo".
Em 1984, o espanhol Carlos Cano comprou um disco de Amália, em Lisboa. Apaixonou-se pela fotografia de Amália - olhos cerrados, pálpebras pintadas de azul, boca vermelha, cabelo negro. Depois, pela voz de Amália - de cor, também, "negra, quase mourisca, com uma capacidade de emocionar fora do comum". Inspirado, escreveu "Maria la Portuguesa", a pensar em Amália. De seguida, enviou-lhe uma primeira gravação da canção.
Amália telefonou-lhe de volta, para lhe dizer que, há muito tempo, não ouvia uma canção tão bonita. Então, Carlos Cano encheu-se de coragem e pediu-lhe para gravar a sua voz. Apesar de já não gravar, há cerca de dez anos, Amália acedeu. Gravaram em Lisboa. No entanto, a voz de Amália acabou por não entrar na canção, por motivos técnicos.
Em 2000, Carlos Cano voltou a gravar “Maria la Portuguesa”. Desta vez, Amália, apesar de ter morrido no ano anterior, apareceu na gravação. Já Carlos Cano desapareceu, nesse mesmo ano, levado por um aneurisma. O disco também estava desaparecido, desde a minha última mudança de casa. Apareceu agora, em boa hora.
A canção está aqui:
O sr. Carlos fechou a loja, há poucas semanas. A loja do sr. Carlos tinha muitos anos. Atravessou várias gerações. O sr. Carlos vem de uma família de comerciantes, mas teve de fechar a loja porque "isto não está bom para o comércio". Passei-lhe à porta. Está reaberta. Agora, é uma imobiliária. Agora, o sr. Carlos vende casas: moradias e apartamentos com "acabamentos de luxo" (agora, é tudo "de luxo") e lojas com "excelente localização". Deixo duas questões, para fechar a loja:
Como é que um país que não tem dinheiro para comprar casas normais, só anda a vender casas de luxo?
E como é que um país que não para de fechar lojas, continua a abrir lojas de vender lojas?
Queria, desesperadamente, chegar ao fim deste livro. Porque me estava a incomodar. Nem sabia porquê. Depois, percebi. Era por causa do cheiro. O cheiro a humidade, a pó, a caruncho, a mofo, a naftalina. O livro fala de Portugal, depois de Abril, mas o cheiro é do regime anterior. Como assim? Então, e "As portas que Abril abriu"? e "O cheirinho a alecrim"? e "O dia inicial inteiro e limpo"? Porque me cheira assim?
No livro, uma jornalista portuguesa, a trabalhar nos Estados Unidos, regressa a Portugal para recontar uma das mais belas histórias do século XX: a Revolução dos Cravos. Fá-lo porque o mundo está um lugar muito feio e é preciso contar histórias bonitas ao mundo. Este ponto de partida ajuda a aumentar o desconforto. É que essa ideia, vinda de fora, não cola com a realidade, cá dentro.
A protagonista vai reencontrar o seu pai, com quem tem uma relação difícil, e vai tentar reencontrar alguns dos amigos do seu pai: são alguns dos principais heróis de Abril. Todos eles tiveram destinos diferentes. Todos nos transmitem uma tristeza sem fim. Todos nos remetem para o mesmo cheiro.
Chego, finalmente, ao fim do livro. Mas, em vez de me livrar dele, volto para trás e começo tudo de novo. No meio do cheiro (e do fumo, não tinha referido o fumo), há sinais de esperança que não tinha sentido na primeira leitura. É um livro memorável, como as personagens que lhe dão título. Tem a mestria de Lídia Jorge. E não nos facilita a vida...
Não sou da TSF. Nunca fui. Mas quis ser. E tentei. Depois de uns telefonemas, fui recebido por um jornalista, da velha guarda: afável, bonacheirão. "Portanto, gostavas de vir para cá trabalhar?", perguntou-me. "Sim", respondi "gostava muito". "Ouvi umas coisas tuas, vi o teu CV, mas temos um problema". "Ai, sim?", disse eu, a adivinhar a resposta. "É que nós não estamos a admitir pessoas, estamos a despedi-las". E, mais à frente, "Gostava de te dizer que isto é uma fase, mas acho que não é. Estes gajos não vão descansar, enquanto não acabarem com esta mer... Desculpa, não te devia estar a dizer estas coisas. És jovem, tens sonhos e tal... " Foi há mais de 20 anos. Tem sido assim, há mais de 20 anos, a pensar que "pior é impossível". Infelizmente, não é. É sempre possível. Só não é surpresa. Devia ser, mas não é.
Ainda a propósito da genialidade do vídeo de homenagem ao Sérgio Godinho.
A viagem, de regresso à consciência, foi lenta e dolorosa. Primeiro, ruídos que, afinal, eram vozes. Depois, melodias de vozes, ainda sem palavras. De seguida, palavras desconexas, sem significado. E, finalmente, começaram-me a chegar palavras, palavras mesmo, que eu juntava em frases, mentalmente, dando-lhes sentido. Sara Tavares. Falavam de Sara Tavares. Uma das enfermeiras tinha ido vê-la, ao vivo, e apercebe-se do meu interesses na conversa. "Gosta da Sara Tavares, Miguel?" Digo que sim, com a cabeça. "Já a viu, ao vivo?" Volto a dizer que sim. "Ela é extraordinária". "As pessoas continuam a pensar na Whitney Houston e no Festival da Canção, mas ela está noutra fase. Sentada, com a sua viola, a cantar em criolo..." Sorrio. "Que pena não termos aqui a música dela, senão ouvíamos os dois". Voltei a sorrir. Sentia, de resto, que a vida começava a sorrir-me de novo.
Regressei a casa, depois de quase um mês no hospital. Ouvi Sara Tavares. A cantora que passei a associar ao meu caminho de regresso à vida. Custa-me aceitar que ela, hoje, fez o caminho, na direção contrária.