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Desculpe o auê. Não tem de quê. A Rita que eu Lee. E tanto ouvi.
- Não me digas que gostas dos Trovante?
- Chegaram a ser das minhas bandas preferidas.
- Ai, não tenho paciência para aquela gente.
- Que gente?
- Os betos de camisa de marca, por fora das calças, e sapatos de vela e fios de cabedal...
- Pois, mas os Trovante não vieram daí.
- Não vieram da linha?
- Não, vieram da esquerda.
- A sério?
- Pensa no nome: "Trovante" é a junção de "trova" com "avante".
- Música de intervenção?
- Sim, politicamente empenhada. Misturavam música popular, com jazz e rock.
- Tens algum disco deles?
- Vários. Comprei o primeiro álbum deles numa discoteca...
- Na linha de Cascais!
- Não... numa loja onde a malta de esquerda se costumava juntar.
- Tenho que ouvir isso.
- Não tens, mas podes. E estás, sempre, a tempo.
Música aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=hml9ubcstRo
"A tua vontade, justiça, igualdade / Não chega aqui dentro de casa", canta a Mariazinha, que se vai tornar Marta, numa das melhores criações de José Mário Branco. Sempre foi das minhas canções preferidas. Fala da mulher, dos direitos da mulher, esquecidos na agenda do homem que, por mais de esquerda que fosse, tinha outras preocupações e prioridades. "E fico à espera que me socializes", canta Maria (zinha), já em transformação para Marta. Lembro-me de ouvir a canção a pensar nas mulheres. Como é que é possível que alguém que se queixa do patrão, que luta pelos seus direitos, não se aperceba que, em casa, reproduz o que lhe fazem fora de casa? Sim, muitas vezes, o socialismo fica à porta de casa. Porque não sai de nós próprios, não sai para os outros, é um socialismo só para nós. O que é, obviamente, a negação do socialismo. Pensei, muitas vezes, nesta canção. Extrapolei-a, para pensar que todos nós, explorados, somos, tantas vezes, exploradores dos que nos rodeiam. Mas, hoje, apetece-me voltar a fechar o foco. Porque há um homem, visto como farol da esquerda, que está a enfrentar um processo de assédio sexual em praça pública. Não sei (não sabemos, ainda) se as suspeitas têm fundamento. Mas sei que, em 1972, José Mário Branco já escrevia sobre mulheres que se transformaram em Martas. Martas que cantam: "Sei aquilo que fui e que jamais serei".
Canção aqui: https://youtu.be/Av-bxaTtkYs
Uma canção é composta por música e letra. Uma das questões que se coloca, frequentemente, aos escritores de canções, é saber o que é que nasce primeiro. Outra, é saber se a letra pode ser considerada um poema. Se vive sem a melodia. Neste caso, a discussão tende a ser acalorada. Porque vivemos, ainda, com uma concepção de "acima e abaixo" - "cultura erudita" versus "cultura popular". Conheço muitos versos da "cultura popular" que são bem melhores do que alguns versos da "cultura erudita". Não há muito tempo, o tema foi discutido por causa do Nobel da Literatura, atribuído a Bob Dylan. Muitos "da literatura" não gostaram. Os da cultura popular chamaram-lhe "snobs". Não sei quem tem razão, mas não me apaixonei pela discussão. Estranhei, apenas, por uma questão "técnica". Para mim, não se trata de saber se os textos de Bob Dylan são suficentemente bons, para serem premiados com um "Nobel". Mas, antes, saber se as canções, os discos ou os concertos ao vivo podem ser premiados como "literatura". Estranharia um "Grammy" ou um "Brit Award" para Saramago, por exemplo. Um dos escritores de canções mais brilhantes que conheço (música e letra), chama-se Fausto. No "Fala com Ela", da Inês Meneses, diz que não se considera poeta e explica porquê. Não é por ser mais, ou menos. Não é por ser "acima ou abaixo". É por ser outra coisa.
Pelé morreu. Na rádio, na televisão, nos jornais, lembram o epíteto: "rei". O rei Pelé. O meu coração republicano lembrou-se, no entanto e de imediato, que Pelé foi ministro do desporto, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Um homem negro, pouco escolarizado, vindo da pobreza, catapultado (pelo futebol) para o estrelato mundial, era, agora, ministro. Poucos anos depois, outro negro famoso tomou posse como ministro (desta vez, da cultura): Gilberto Gil. Não faço ideia se foram bons ministros, mas não posso deixar de pensar o quão inspirador terá sido, para tantos jovens negros e pobres, ver dois dos seus serem empossados no cargo de ministros. Aqui, os dois posam para a fotografia. Há um terceiro, na fotografia: Caetano Veloso. Um "negro quase branco", que nunca foi ministro, mas que, há muito, reina no meu coração republicano.