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"O senhor doutor tem tanto para fazer e anda aqui a perder tempo connosco". A tia estava incomodada. Tinha vindo trazer um leitão ao senhor doutor - para agradecer "por tudo" - e, agora, o senhor doutor agradecia o agradecimento, perdendo tempo connosco. Passeava pelas ruas, apontava estátuas, descrevia igrejas e museus, entrava em lojas de quadros. "Oh, senhor doutor!" De nada serviam as nossas explicações: que o "senhor doutor" era de história e gostava de museus, que era das artes e gostava de lojas de quadros. Em vão. A tia podia não perceber muito de história - nem de quadros, nem de estátuas, bem de livros - mas percebia de trabalho (oh, se percebia!) e aquilo não era trabalho. E, certamente, que o senhor doutor ("Não lhe chamem 'Manel', meninos, tenham respeito!") precisa de trabalhar, que ninguém chega a doutor sem trabalhar muito, sem queimar as pestanas. De modo que seguimos o passo estugado, da tia, e deixámos o doutor, apeado, a encolher os ombros e a piscar os olhos. Acho que o senhor doutor não percebeu a tia. Voltei paras trás, para lhe explicar, mas continuou sem perceber. Acho que vou ter que lhe fazer um desenho, que o doutor é das artes.
Paris. Lembro-me que chegámos, excitadíssimos, ao Centro George Pompidou. As 10 horas ainda não tinham chegado e a manhã já era quente, luminosa e barulhenta. O edifício revelava-se a escultura pós-modernista das fotografias: vidro, metal, túneis de teletransporte, tubos de todas as cores. E o melhor estava para vir: Kandinsky (eia!), Matisse (hum!), Picasso (uau!), Miró (fuuu!). Depois de uma sanduíche leve, e breve, mais telas, mais esculturas e instalações, e mais "uaus!" de alegria e espanto. As horas foram passando, as pernas começaram a pesar, a barriga a reclamar que a arte não puxa carroça. Já não respondemos, com excitação, às instalações de Yoko Ono e bordejámos, exaustos, o urinol de Duchamp. Saímos, cilindrados, da nave espacial - a sentir os efeitos do "jet leg" no corpo. Eram, novamente, 10 horas. Só não eram da noite, como nesta fotografia, porque estávamos no verão. O Pompidou foi uma experiência do outro mundo. Creio que ainda é.
O que pintaria, hoje, Paula Rego? Não sabemos. Nunca saberemos. Sabemos, no entanto, o que pintou Paula Rego, depois de ter visto a lei do aborto ser arrastada para um referendo e depois da maioria dos portugueses ter optado por não votar. Nessa altura, Paula Rego revelou que recorreu ao aborto clandestino quando era estudante de artes, no Reino Unido dos anos 50. Voltou a lembrá-lo, recentemente, quando a reversão do aborto voltou a ser discutida nos Estados Unidos. Hoje, em Portugal, volta-se a discutir a lei da eutanásia. Há quem volte a usar os mesmos argumentos: a discussão foi muito apressada; é preciso convocar um referendo. O marido de Paula Rego morreu, há mais de 30 anos. Viveu 20 anos com esclerose múltipla. Sobreviveu a uma tentativa de suicídio, mas não à doença. Paula Rego morreu, ontem, aos 87 anos. Não sobreviveu, no entanto, à imortalidade.
As bibliotecas são locais de memória, de partilha e generosidade. Dão-nos acesso a um património de séculos, a lugares distantes e inacessíveis e são, elas próprias, lugares. Gosto de visitar bibliotecas, de percorrer os corredores, de afagar lombadas, de me sentar a folhear livros e a pensar que o tempo nunca será suficiente para os ler. As bibliotecas não só nos deixam ler os seus livros, como nos deixam levá-los, de empréstimo, para casa. Algumas, chegam, até, a dar livros. Como este: uma biografia de Stravinsky, editada pela francesa Hachette, em 1968. Tem belíssimas fotografias (das "escandalosas" coreografias da "Sagração da Primavera"; do próprio Stravinsky, ao longo dos anos; ou de Stravinsky, acompanhado por outros génios da música como Debussy ou Benny Goodman). Tem ilustrações maravilhosas (Picasso, Cocteau, Modigliani). Tem cheiro a coisa preciosa. Tem um carimbo a dizer "Oferta". Só para não me esquecer de dizer "obrigado". Não esqueço (como poderia esquecer?) Obrigado. Muito obrigado.
Mau aluno, calão, repetente, o Toni era dado a extremos: ora subia a estados de euforia, ora caía em profunda tristeza e depressão, a que se seguiam, muitas vezes, comportamentos agressivos. Toda a gente mantinha com ele uma relação de cordial distanciamento. Normalmente, o Toni sossegava a desenhar. E que bem que ele desenhava! Mas, normalmente, eram coisa estranhas, sinistras e assustadoras: velhos doentes, com olheiras; seres imaginários; gente sem cabeça ou sem membros; formas geométricas que se entrelaçavam com motivos naturalistas; tudo, aparentemente, sem sentido. Muitas vezes, no caminho da escola para o bairro social onde morava, o Toni entrava numa galeria de arte. Por vezes, arrastava-me com ele. E foi, assim, que eu conheci Cruzeiro Seixas, que tinha desenhos tão estranhos como os do Toni. Cruzeiro Seixas morreu, aos 99 anos. O Toni deve andar por aí. Obrigado a ambos.
Segunda fase de desconfinamento. Hoje, reabrem museus, cafés e restaurantes. Que angústia! Como decidir entre uma pintura moderna e um bom copo de tinto? Ó Picasso, não dá para juntar dois prazeres?
Noutros tempos, os curadores pensariam numa "vernissage", com bossa nova, champanhe e caviar. Mas, a galeria está fechada e as exposições são "online".
Tolstói, Dostoevsky, Soljenítsin, Nabokov
Tchaikovsky, Shostakovich, Prokofiev
Kandinsky, Chagall
Eisenstein
Estou a pensar em expulsar os russos, cá de casa...