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- Ó pai, eu comecei a falar muito cedo, não foi?
- Sim.
- Lembras-te qual foi a primeira palavra que eu disse?
- Não tenho a certeza. Talvez, "etimologia".
- Isso quer dizer o quê, pai?
- Não sei. Tens de ir à origem da palavra.
- Ok, depois eu vou.
- Não queres ir já?
- Não. Primeiro tenho de ir lanchar.
"Guerra" é a Palavra do Ano, de 2022. Numa altura de abundância de palavras (ditas, escritas, gritadas, escarrapachadas), em que se usa e abusa das palavras, escolher uma palavra - uma só - por ano, soa a tarefa hercúlea. Quando a iniciativa da Porto Editora começou, perguntei-me se fazia sentido elaborar um "top" de palavras, submetê-las a votação e eleger uma só palavra. Porque a escolha pode refletir, apenas, a espuma dos dias. Mas, também é verdade que pode servir de barómetro, que ajuda a perceber os assuntos que mais preocupam os portugueses. No ano de 2022, marcado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, a palavra escolhida foi "guerra". As palavras relacionadas com a Covid-19, que tinham dominado os dois últimos anos (no ano passado foi "vacina"), desapareceram. Se passarmos por 2017, ano dos grandes incêndios, a palavra do ano foi, precisamente, "incêndios". Em 2011, o ano da chegada da troika, a palavra escolhida foi "austeridade". Uma palavra - uma só - pode dizer muitas coisas. Pode dizer muito.
A coisa que eu mais gosto, num dia de greve, é a quantidade de vezes que se ouve a palavra "inalienável".
Há palavras que valem mais que mil imagens.
E aqui estou eu, a fazer Palavras Cruzadas com a Dalila Carvalho na Antena 2.
(Para ouvir, clicar na imagem ou aqui)
Jarvis Cocker, a voz dos Pulp, tem ouvido de tísico e "olho de Balzac". No seu disco mais recente, "Chansons d'Ennui", o personagem transgressor da britpop assume o papel de uma estrela pop francesa. Em "Paroles, paroles", Cocker faz de Alain Delon, a contracenar com Dalida (papel desempenhado, aqui, por Lætitia Sadier). É a canção em que um Delon, sedutor, diz coisas como "Tu és o ontem e o amanhã" ou "Tu és como o vento que faz cantar os violinos e espalha o perfume das rosas" e Dalida reponde "Caramelos, bombons e chocolates" ; "Podes dá-los, a outras que amem o vento e as rosas". Ele insiste: "Não percebo". Ela explica, no refrão: "Palavras, palavras, palavras" ; "Palavras que semeias ao vento".
Dalida resiste, portanto, à canção do bandido. Lætitia também. Eu não. E Jarvis Cocker é um ótimo bandido.
zaragatoa - substantivo feminino - zaragata provocada sem motivo concreto
A mesma palavra, para duas notícias, envolvendo dois aeroportos, em dois países diferentes: "caos". "Caos" no aeroporto de Lisboa. O Instituto dos Registos e Notariado não tem capacidade de resposta para os pedidos relacionados com passaportes e as pessoas ocorrem à Loja do Passaporte do Aeroporto de Lisboa, gerando o "caos". Há um outro "caos", logo a seguir, no alinhamento do noticiário. O "caos", no aeroporto de Cabul: onde milhares de pessoas, desesperadas, tentam fugir do país, para salvarem a vida. As palavras têm um peso, que deve ser usado com conta e medida. Chamar "caos" a tudo o que mexe, começa por esvaziar a palavra para, de seguida, nos esvaziar a nós próprios. Nós somos feitos de palavras.
[Foto: Wakil Kohsar / Getty Images]