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Durante muito tempo, acreditei que Astrud Gilberto não era brasileira. Nesse tempo, a informação era pouca e chegava devagar. Astrud não soava a nome português/brasileiro. A cantora também não. Tinha uma fragilidade - na voz, no canto, na pronúncia - que parecia denunciar a sua condição de estrangeira. E, isso, dava-lhe um certo encanto. Muito, até. A pouco e pouco, fui sabendo pormenores. A cantora tinha ascendência alemã, mas era brasileira, da Baía. Mudou-se, com os pais, para o Rio de Janeiro, onde se tornou amiga de Nara Leão. Foi Nara quem a apresentou a João Gilberto, com quem se casou. Uns anos depois, foram viver para os Estados Unidos. Foi lá, que João Gilberto gravou uma nova versão da “Garota de Ipanema”, com o saxofonista norte-americano Stan Getz. Astrud cantou por acaso. Ela não era cantora, mas passou a ser a voz de uma das canções mais famosas, de sempre e do mundo inteiro. O casamento acabou pouco depois: João Gilberto voltou para o Brasil, Astrud ficou. Morreu, aos 83 anos. Estrangeira, como a tinha imaginado.
Gosto de misturas. Gosto da música que nasce da mistura e que gera novas misturas. Em 1976, Vinicius de Moraes ("O branco mais preto do Brasil") e o seu companheiro, Toquinho, cruzaram o oceano, para se misturarem com a italiana Ornella Vanoni. Ornella é uma espécie de Simone "lá deles": uma cantora talentosa e carismática; diva da canção "leggera"; atriz de teatro e cinema; presença, assídua, na rádio e na televisão. Dona de um vasto repertório, Ornella abordou o cancioneiro de Vinicius e Toquinho, num disco que começa com "Senza Paura / Sem medo" e vai, sem medo, até ao fim. "La voglia, la pazzia, l'incoscienza, l'allegria" não é, no entanto, um desses discos típicos da moda "world music" que chegaria nos anos 90, somando instrumentos e sonoridades contrastantes. Este é um disco típico de Ornella - seguindo a tradição italiana e europeia - com a bossa e o samba, da dupla brasileira. E tudo soa fluído, escorreito e natural: a cantora italiana a sambar e os cantores brasileiros a cantarem em italiano (Vinicius foi diplomata em Itália, o que terá ajudado). A sensação de que já conhecíamos as canções é confirmada pelo facto de, efetivamente, já as conhecermos. Mas, ao mesmo tempo, tudo é fresco, tudo é novo e tudo é puro, como numa canção de Jarabe de Palo que diz que "No puro não há futuro / A pureza está na mistura". Foi assim, em 1976, e continua a ser. Ornella tem quase 90 anos. Há dois anos, gravou um samba. Ornella ainda é mistura, ainda é futuro.
Ninguém fugiu à classificação, para descrever Rita Lee. Parecendo muito, pareceu-me pouco. Lembrei-me de Caetano Veloso e da sua resistência inicial ao rock, ainda nos anos 50. Comparando com a riqueza da música brasileira, o rock pareceu-lhe coisa pouca. Tão demasiado simples - nos ritmos, nas melodias, nas harmonias - que lhe pareceu simplório. A rebeldia também não o seduziu. Eram, apenas, meninos ricos, de um país rico, armados em rebeldes. Mudou de opinião, com a chegada dos Beatles e dos Stones. De seguida, acolheu o rock, no tropicalismo - movimento que inventou com a sua tribo de baianos (Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé) e, ainda, Nara Leão e Os Mutantes. Os Mutantes (estive a ouvi-los, esta manhã, e senti a estranheza de sempre) eram a banda de uma jovem, muito jovem, Rita Lee. Os tropicalistas juntavam a MPB - que já abarcava vários estilos - com poesia de vanguarda, cultura pop e rock psicadélico. Voltei ao (precioso) livro de Caetano, "Verdade Tropical". Escreve Caetano: "Depois que voltei de Londres, nos anos 70, Rita Lee se tornou, com um trabalho de excelente qualidade e grande sucesso, a roqueira-mor do Brasil." Mais à frente lamenta: "Mas a própria Rita (...) trazia de volta a divisão entre MPB e rock que o tropicalismo tentara superar." A verdade é que Rita gostava mesmo de rock. No entanto, quando carregava no rock, eu pensava "que pena". Uma cantora, compositora, letrista, cheia de Brasil, que, às vezes soava "apenas" a mais uma roqueira - como tantas outras, espalhadas pelo mundo. Mas Rita era um mundo. E era, ao mesmo tempo, profundamente brasileira. Talvez por isso, em Portugal - onde se ouve pouco ou nenhum rock brasileiro - Rita tenha sido, sempre, uma exceção. Mais que rainha, mais que rock, mais que brasileiram, Rita foi única. Foi Rita.
Desculpe o auê. Não tem de quê. A Rita que eu Lee. E tanto ouvi.
As memórias têm cheiro. Os discos também. Este, cheira a cera. Daquela tradicional portuguesa, que se punha no chão de tábua corrida. O disco é brasileiro, bem sei: Caetano e Chico - os dois maiores da MPB - "Juntos e ao Vivo". Ouvimos muitas vezes, lá em casa. "Quando eu chego em casa nada me consola". Enquanto passávamos o esfregão de aço, para retirar a cera velha. "Você está sempre aflita". Enquanto varríamos o pó. "Lágrimas nos olhos, de cortar cebola". Enquanto passávamos a esfregona. "Todo o dia ela faz tudo sempre igual". Enquanto espalhávamos cera nova. "Todo dia eu só penso em poder parar". Enquanto puxávamos o brilho. "Eu quero é dar o fora". Quem não? Quem nunca? Caetano e Chico. Ah, aqueles dois! Aqueles dois sabiam da vida. Aqueles dois sabiam de nós. Encerar tornava-se poético, com Caetano e Chico a cantar o quotidiano. Devíamos-lhe isso. Pagámos-lhes, com cheiro a cera fresca, portuguesa, acabada de pôr.
Ter dois amigos ou familiares, que não se gostam, na sala de estar, é das coisas mais embaraçosas que existem. Tendencialmente, achamos que, se a pessoa A gosta de nós e a pessoa B também, elas devem-se gostar entre si. Infelizmente, descobrimos que, muitas vezes, não é assim. E passamos a ter que convidar um ou outro, alternadamente. Passa-se o mesmo, com os nossos heróis.
No livro "Verdade tropical", Caetano Veloso escreve acerca da surpresa que teve, ao descobrir que o seu herói, João Gilberto, não gostava de Chet Baker. Confesso que também fiquei surpreendido. E, mais ainda, ao descobrir, no mesmo livro, que o meu herói, Caetano, não gostava de David Bowie. Não dá a entender, diz, preto no branco, que não gosta. Sem se importar com os meus sentimentos. Bowie também é o meu herói (com Caetano e Godinho, compõe, talvez, a minha "Santíssima Trindade"). Bowie faria, hoje, 75 anos. Hoje, vou juntá-lo, na minha sala, com Caetano. Pode ser que resulte. Nem que seja "Just for one day". Veremos.