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"A tua vontade, justiça, igualdade / Não chega aqui dentro de casa", canta a Mariazinha, que se vai tornar Marta, numa das melhores criações de José Mário Branco. Sempre foi das minhas canções preferidas. Fala da mulher, dos direitos da mulher, esquecidos na agenda do homem que, por mais de esquerda que fosse, tinha outras preocupações e prioridades. "E fico à espera que me socializes", canta Maria (zinha), já em transformação para Marta. Lembro-me de ouvir a canção a pensar nas mulheres. Como é que é possível que alguém que se queixa do patrão, que luta pelos seus direitos, não se aperceba que, em casa, reproduz o que lhe fazem fora de casa? Sim, muitas vezes, o socialismo fica à porta de casa. Porque não sai de nós próprios, não sai para os outros, é um socialismo só para nós. O que é, obviamente, a negação do socialismo. Pensei, muitas vezes, nesta canção. Extrapolei-a, para pensar que todos nós, explorados, somos, tantas vezes, exploradores dos que nos rodeiam. Mas, hoje, apetece-me voltar a fechar o foco. Porque há um homem, visto como farol da esquerda, que está a enfrentar um processo de assédio sexual em praça pública. Não sei (não sabemos, ainda) se as suspeitas têm fundamento. Mas sei que, em 1972, José Mário Branco já escrevia sobre mulheres que se transformaram em Martas. Martas que cantam: "Sei aquilo que fui e que jamais serei".
Canção aqui: https://youtu.be/Av-bxaTtkYs
E, então, a fadista sentou-se com uma guitarra elétrica e tocou uma música acompanhada, apenas, de uma bola de espelhos que espalhou estrelas pela sala. Podia ter sido o cúmulo da piroseira, mas foi Carminho na sua plenitude. O melhor concerto que eu vi dela. A voz esteve irrepreensível e os músicos (guitarra portuguesa, viola de fado, baixo, guitarra elétrica e pedal steel) em ponto de rebuçado. A luz, as projecções e o cenário estiveram perfeitos: gerando um quadro diferente para cada canção. Carminho foi contida, quando repertório lho exigiu; espontânea, quando fez sentido; apaixonante, em qualquer dos casos.
Carminho domina o fado tradicional. Nasceu no meio dele. Mas é uma rapariga do seu tempo. E, por isso, tudo soou natural, orgânico, depurado, confeccionado e digerido ao detalhe. É certo que outros fadistas forçaram a corrente e abriram caminho para Carminho. Numa entrevista que lhe fiz, no início da sua carreira, reconheceu isso mesmo. Podem-lhe ter aberto caminho, mas foi ela quem o traçou a seu gosto. Que é, também, o nosso.