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Estou a ouvir a 5.ª Sinfonia de Mahler e a pensar nas mãos e nos braços de Tár; no rosto e nos olhos de Tár. E na voz, no discurso, na inteligência e no brilhantismo. E, ainda, na disciplina, no rigor e na assertividade implacável da personagem interpretada por Cate Blanchett. Depois de ter saído do cinema, senti-me preenchido e atordoado. Poucos dias passados, tenho a certeza de que o filme "Tár" vai-me acompanhar, nos próximos anos. Do mesmo modo que "Amadeus", de Miloš Forman: quando ouço o "Confutatis", do Requiem de Mozart, vejo Mozart a desenhar melodias no ar e a ditar as notas a Salieri, enquanto morre. Do mesmo modo que "Brassed off" / "Os Virtuosos", de Mark Herman: quando ouço o "Adagio", do Concerto de Aranjuez, de Rodrigo, vejo a nobreza, a paixão e o desespero da banda filarmónica, na sua luta pelo direito ao trabalho e a uma vida digna.
"Pensem na 'Morte em Veneza'", pede Tár, aos músicos que ensaiam o "Adagietto", da 5.ª Sinfonia de Mahler. A música faz parte do filme de Visconti. De resto, "Tár" está cheio de referências: a maestros, a músicos, a compositores, a outras artes - o que pode fazer com que os espetadores se sintam esmagados e excluídos. Mas, essa sensação faz parte da experiência que muitos sentem: ao entrarem numa grande sala de concertos, ao contactarem com os rituais da orquestra, ao enfrentarem uma sinfonia com uma duração superior a uma hora. Esta é uma música poderosa, mas é, também, uma música muito ligada aos círculos do poder e Tár não hesita em exercer o poder, de forma quase absoluta. Tár não sabe, no entanto, que o poder que exerce, pode estar a ser questionado, minado e, até, sabotado. Ou sabe?
São poucos os filmes onde sinto que a música é bem tratada. Não é o caso deste. Sinto, até, que, em nome desse rigor, a narrativa do filme possa, aqui e ali, ter sido sacrificada. Nesse sentido, "Tár" pode, até, não chegar a ser considerado uma obra-prima (o tempo o dirá), mas é, seguramente, um filme monumental. Mais de uma hora depois, a Sinfonia n.º 5, de Mahler, recomeça na minha aparelhagem: ouve-se o som do trompete e eu regresso mentalmente, à imagem de Tár, a maestrina implacável, a entrar em palco...
Stromae. O nome é um anagrama da palavra "maestro". "Maestro" tem dois significados distintos, mas interligados: compositor (de música) e regente (de um grupo de músicos). A palavra "maestro", por sua vez, vem da palavra latina "magister", que está, também, na origem da palavra "mestre". Dá para antever, Stromae é mais do que um cantor pop - é todo um programa.
Com, apenas, dois discos, Stromae tornou-se uma grande estrela no mundo francófono. A sua fama alastrou-se, depois, a outros territórios: europeus, africanos e americanos. Foi por essa altura que Stromae teve uma reação, grave, a um medicamento contra a malária, a que se seguir uma depressão, prolongada. O regresso, passados quase 10 anos, parte desse inferno pelo qual passou. A canção "L’enfer", o videoclip e a estratégia de marketing (com uma entrevista jornalística a desaguar numa atuação para a televisão) são perturbadores. Mas já tinha sido assim quando questionou o mundo do trabalho e do dinheiro com "Alors on danse", ou quando simulou uma estrela pop embriagada em "Formidable".
Stromae é um artista transversal. É um poeta, um compositor, um produtor, um esteta. Não lhe bastam as canções (mesmo que elas se bastem por si), pensa na forma como as veste: em videoclips cuidados, em eventos mediáticos, em apresentações ao vivo pensados ao pormenor: cenário, luz, som, coreografia, guarda-roupa. E, sim, ele também tem preocupação como o que veste: tanto que tem uma linha de moda (a "Mosaert" - mais um anagrama, este lembra Mozart). Stromae é maestro e mestre, em várias artes. É um dos artistas mais estimulantes da atualidade. O disco "Multitude" é uma obra-prima.