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Uma cerimónia de família afastou-me, ontem, da cerimónia do 10 de Junho. Ouvi, com atraso, o discurso do "aqui ninguém tem sangue puro", de Lídia Jorge. Belíssimo discurso. Infelizmente, a seguir, tive de ouvir o "vai para a tua terra", na cerimónia aos antigos combatentes - com direito a saudação nazi - e a notícia da agressão ao ator Adérito Lopes, à porta do teatro A Barraca, por um grupo de "portuguezes" com z. "Ninguém tem sangue puro". Ninguém. Muito menos quem tem sangue nas mãos.
"Miguel, como é que é?", perguntava a amiga da minha mãe. E eu saía para a rua, braços do ar, dedos em "V", de vitória: "PPD! PPD! PPD!". Toda a gente sorria. Naquele tempo, o PPD era muito popular na mercearia da minha mãe. As senhoras elogiavam o Sá Carneiro e comparavam com outros políticos. Era muito melhor que o "bochechas" e infinitamente melhor do que o "cavalo branco". Uns "estes" e uns "aqueles". "Não viu n' O Diabo o que eles fizeram, desta vez?" "A Vera Lagoa é que os topa a todos." "Miguel, como é que é?" Na minha cabeça, o "bochechas" e o "cavalo branco" misturavam-se com o Major Alvega, o Zé Gato, a Gabriela ou a Lina. A Lina era filha da dona Alzira. Mas, apesar de morar lá na rua, parecia saída de um filme americano. Era alta, de sapatos altos, "como os do Sá Carneiro". "Não me diga que nunca reparou nos tacões?!" E era loira. "A do Sá Carneiro, também". E tinha o cabelo escorrido, a cair pelas costas abaixo. A Lina. Usava cigarro, na mão direita, e namorado, no braço esquerdo: o Zé Nando. O Zé Nando tinha um ar amalucado e mais cabelo do que ela: na cabeça, sim, mas, também, na cara e no peito. Casaram-se, no civil: os dois, de ganga e cigarro na mão. Nunca tal se tinha visto. Foi tema de falatório. A Gabriela, também era: meia despida e completamente descalça. A Lina, ao menos, usa sapatos. A Gabriela, não. Sempre a recusar os sapatos do Seu Nacib. Mas, aí, é a fingir, é na televisão, é no Brasil. "Aqui é diferente". A Lina, nem um vestido, como deve ser. Nem um véu, nem uma grinalda. Nem um homem, como deve ser. O pai morreu, "ui, há muitos anos!". O Zé Nando é um rapazolas, de jardineiras. Só ganga, para ele e para ela. Credo, valha-nos o Sá Carneiro. "PPD! PPD! PPD!" O Sá Carneiro, que nem precisa de escrever os discursos. Diz tudo de cor. Diz tudo o que tem que ser dito. Sem papas na língua. O Sá Carneiro.
Antes de conhecer a social-democracia. Antes, muito antes, eu conheci a social-mercearia.
Passaram mais de 15 anos, desde o último disco, e quase 35, desde "Desintegration" - o último disco relevante dos The Cure. Depois de várias aventuras sonoras (umas mais bem sucedidas do que outras), o álbum "Desintegration" foi encarado, na altura, como um regresso à sonoridade de Faith (1981) e Pornography (1982) - com músicos mais competentes, em termos técnicos, e arranjos mais sofisticados. Por sua vez, o novo disco dos The Cure ("Songs of a Lost World ") tem sido comparado a "Desintegration". Desta vez, porém, a maior diferença está no quase alheamento da estrutura tradicional da canção pop. Neste disco, não há canções que se aproximem de "Lullaby", "Pictures Of You" ou "Lovesong". Em compensação, os temas são muito bem cuidados, em termos instrumentais, podem estender-se para lá dos 10 minutos e parecem condensar o melhor dos The Cure, ao longo dos anos, e dos grupos ao seu redor. As letras sobre perda e abandono remetem para os Joy Division; a tensão e raiva, para Siouxie and The Banshees; a sonoridade melancólica para os Cocteau Twins ou Durutti Column. "This is the end", canta Robert Smith no início do disco - que termina com "It's all gone" (...) "Left alone with nothing". Sim, “tudo isto é triste", "tudo isto existe" e, até, parece fado. Bem bonito, este "Songs of a Lost World".
Vá lá, meninos, ponham-se aí… um chorozinho para a fotografia. Já está, obrigado.
"As delícias do mar levam caranguejo?!", perguntei intrigado. Devolveram-me um "Sim", irónico, e uma contra pergunta: "Porquê, achavas que eram feitas com lavagante?". "Não", confessei, "achava que eram 100% artificiais". Pensei nesta conversa, porque o João Gobern tem um novo livro, sobre a indústria musical. O João traça - com rigor, mas, também, com uma certa mágoa - o retrato da decadência desta indústria, marcada pela perda de importância do disco - uma consequência do "download" e do "streaming". No entanto, acabei o livro (em dia de reflexão nacional) com algum otimismo: "Com que então, ainda há indústria... ". Nada mau. Ah, e o livro é (naturalmente) uma delícia.
112 é número de emergência. Mas, neste caso, é número de permanência. Se fosse viva, Helena Sá e Costa faria 112 anos. Permanece um dos nomes mais importantes da música clássica, em Portugal. Permanece, nas mãos dos pianistas - seus discípulos. Há poucos dias, conversei com um: António Pinho Vargas. Há poucos meses, conversei com outro: Pedro Burmester. Pedro vai tocar esta tarde, com Fausto Neves (outro discípulo), na casa da família. Juntos vão interpretar uma peça para dois pianos, que o pai de Helena escreveu e tocou com a filha. E vão tocar no piano do pai e no piano do avó de Helena. Mais intimidade é difícil.
Para ouvir, aqui: