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E eis que chega maio, com canções de Abril.
Morreu o editor Arnaldo Trindade. Lembrei-me deste texto, a propósito da sua importância na carreira de José Afonso.
[Publicado em 7 de outubro de 2021]
Um mês e meio antes do 25 de Abril, José Afonso - que já era cantor de Abril, antes de Abril acontecer - assinou este contrato. Foi só uma formalidade. O primeiro contrato - esse, sim, revolucionário - tinha sido assinado em 1968: o editor, Arnaldo Trindade, comprometia-se a pagar um salário fixo ao artista; José Afonso a gravar um disco por ano. Assinado o contrato, José Afonso gravou o disco "Cantares do Andarilho". A obra-prima (é o álbum de "Vejam bem") só não se destaca mais dos discos seguintes, porque estes variam entre o "tão bom como" e o "ainda melhor do que". José Afonso é, obviamente, um génio.
Podia (devia?) ter partilhado uma canção ou a capa de um dos seus discos. Partilho, no entanto, a imagem do contrato (está no interior de uma edição especial do "Cantares do Andarilho") porque me parece demonstrativa de uma coisa óbvia: sem meios de subsistência, José Afonso não teria conseguido criar e gravar a sua vasta obra. Para isso ter acontecido, foi necessário celebrar contratos e mobilizar meios técnicos, financeiros e artísticos. E foi por isso acontecido, que a música de José Afonso chegou até nós. Só que, entretanto, a empresa que detinha as gravações faliu, os discos esfumaram-se e ficámos privados de José Afonso.
E, agora, a boa notícia: até ao final do próximo ano, os 11 discos de José Afonso, gravados entre 1968 e 1981, vão ser reeditados. Vão ficar disponíveis nas plataformas digitais, em CD e em vinil. "O caminho faz-se caminhando" e começa (vejam bem!) com o "Andarilho". Cantemos.
Morreu o poeta Joaquim Pessoa. Gostava de conhecer melhor o seu trabalho poético. Vou adiando para "um dias destes", que é um local habitado por muitos poetas e escritores. Conheço Joaquim Pessoa, das canções. A rádio e os jornais destacam (bem) a "Amélia dos olhos doces" (Carlos Mendes) e "Lisboa, menina e moça" (Carlos do Carmo). Mas é curto. Ele tem tantas canções! Só no disco "Uma canção para a Europa", que corresponde às canções do Festival de 1976, Carlos do Carmo canta três poemas seus: "Lisboa Menina e Moça" (em parceria com Ary dos Santos), Cantiga de Maio (não confundir com a canção de José Afonso) e "Onde é Que Tu Moras?" (uma das canções da minha vida). Só essa, já era muito. Mas há mais, muitas mais.
Gosto de me colocar no lugar do outro. Pelo menos, tento. E se eu fosse o outro? E se eu estivesse no lugar do outro? E se o outro estivesse no meu lugar? A língua inglesa tem a expressão "in my shoes / in your shoes" - à letra, "nos meus sapatos / nos teus sapatos". Hoje, apeteceu-me estar nos sapatos do Zeca. Melhor dizendo, nas tamanquinhas.
(O disco "Com as minhas tamanquinhas", de José Afonso acaba de ser reeditado. Depois de vários anos sem edição discográficas, a obra integral de José Afonso está a ser reeditada).
O treino foi em terra, que havia tempestade no mar. O barulho da chuva - ora vai, ora vem - lembrava o som das ondas. Tudo se tornou monótono. "Vou pôr música, para animar", disse-nos o nosso capitão. A música dos Clash espalhou-se pelo pavilhão. Senti a metamorfose: de "índio da meia-praia", a "punk" da meia-idade.
Há uns dois ou três anos, andou por aí uma polémica sobre um jovem que aguardava financiamento para fazer um doutoramento. Ao que parece, o jovem era bom aluno, o trabalho seria interessante, o orientador competente e a faculdade que o aguardava era de fama internacional. O jovem é uma figura pública, tornou a sua situação pública e obteve tempo de antena nos media e nas redes sociais. E parece que, na falta de financiamento público teve ajuda, pública, de financiamentos privados. Para mim, a situação foi confrangedora. Porque existem centenas de jovens como este, com a vida empatada, por atrasos em concursos públicos. Porque é que este caso foi tão falado? Porque veio de alguém, com acesso aos media e aos espaços de opinião. Gastamos muito tempo a falar das diferenças entre esquerda e direita (que existem e devem ser discutidas), mas guardamos pouco tempo para discutir as diferenças entre ser de "cima ou de baixo".
Acabar com as diferenças entre "os de cima e os de baixo" tem sido uma das maiores conquistas de Abril. É pena que alguns defensores de Abril se esqueçam disso. Foi por isso que eu gostei tanto do livro "Os filhos da madrugada", de Anabela Mota Ribeiro. Mostra um país de gente jovem, culta, inteligente, talentosa: escritores, artistas, políticos, empresários, cientistas. Muitos deles, vêm de meios humildes, marcados pela pobreza e pelo analfabetismo. É o país do "Eu vim de longe" do José Mário Branco, do "o que eu andei p'raqui chegar". É o país que chegou aqui, felizmente. Mas que continua a ter muito para andar, felizmente.
Amanhã, na RTP, Anabela Mota Ribeira estreia uma nova série do programa "Os filhos da madrugada". Amanhã, será o primeiro dia em que haverá mais dias de democracia do que de ditadura. Amanhã, será um bom dia para celebrar Abril. Será mais um dia, mas não será um dia a mais. Todos os dias contam. Todas as pessoas contam.
Bem, estava aqui tão distraído a ouvir a "Balada de Outono", de José Afonso, que nem dei pela chegada do verão.
"A sério, que se dá bem com os seus irmãos? Vejo que ainda não fizeram partilhas", costumava dizer, a brincar, uma pessoa da família. É por pensar em famílias desavindas, pela disputa do dinheiro e propriedades; é por pensar na inveja e na mesquinhez, que tendo a não gostar da ideia de herança. Mas, por outro lado, há uma ideia de continuidade, de memória, que me enternece. Como se ficássemos mandatados para sermos guardiões de tesouros, segredos e prazeres. De guardar e eternizar um legado.
Uma amiga, que insiste em manter-se dentro do meu peito, nomeou-me guardião dos seus discos. Quando ia a sua casa, insistia sempre que fosse eu a colocar a música que acompanhava os nossos jantares e as nossas conversas: às vezes sérias, às vezes divertidas, muitas vezes preguiçosas. Mais tarde, intermitentes, quando os meus filhos passaram a desaguar em sua casa e a virá-la do avesso. O seu gosto pela música francesa (Léo Ferré, Jacques Brel); brasileira (Caetano Veloso, Elis Regina) ou portuguesa (José Afonso, José Mário Branco); está, agora, depositado (a seu pedido) em minha casa.
Recebi um tesouro. Para mim? For me, Formidable!