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Gosto de me colocar no lugar do outro. Pelo menos, tento. E se eu fosse o outro? E se eu estivesse no lugar do outro? E se o outro estivesse no meu lugar? A língua inglesa tem a expressão "in my shoes / in your shoes" - à letra, "nos meus sapatos / nos teus sapatos". Hoje, apeteceu-me estar nos sapatos do Zeca. Melhor dizendo, nas tamanquinhas.
(O disco "Com as minhas tamanquinhas", de José Afonso acaba de ser reeditado. Depois de vários anos sem edição discográficas, a obra integral de José Afonso está a ser reeditada).
O treino foi em terra, que havia tempestade no mar. O barulho da chuva - ora vai, ora vem - lembrava o som das ondas. Tudo se tornou monótono. "Vou pôr música, para animar", disse-nos o nosso capitão. A música dos Clash espalhou-se pelo pavilhão. Senti a metamorfose: de "índio da meia-praia", a "punk" da meia-idade.
Há uns dois ou três anos, andou por aí uma polémica sobre um jovem que aguardava financiamento para fazer um doutoramento. Ao que parece, o jovem era bom aluno, o trabalho seria interessante, o orientador competente e a faculdade que o aguardava era de fama internacional. O jovem é uma figura pública, tornou a sua situação pública e obteve tempo de antena nos media e nas redes sociais. E parece que, na falta de financiamento público teve ajuda, pública, de financiamentos privados. Para mim, a situação foi confrangedora. Porque existem centenas de jovens como este, com a vida empatada, por atrasos em concursos públicos. Porque é que este caso foi tão falado? Porque veio de alguém, com acesso aos media e aos espaços de opinião. Gastamos muito tempo a falar das diferenças entre esquerda e direita (que existem e devem ser discutidas), mas guardamos pouco tempo para discutir as diferenças entre ser de "cima ou de baixo".
Acabar com as diferenças entre "os de cima e os de baixo" tem sido uma das maiores conquistas de Abril. É pena que alguns defensores de Abril se esqueçam disso. Foi por isso que eu gostei tanto do livro "Os filhos da madrugada", de Anabela Mota Ribeiro. Mostra um país de gente jovem, culta, inteligente, talentosa: escritores, artistas, políticos, empresários, cientistas. Muitos deles, vêm de meios humildes, marcados pela pobreza e pelo analfabetismo. É o país do "Eu vim de longe" do José Mário Branco, do "o que eu andei p'raqui chegar". É o país que chegou aqui, felizmente. Mas que continua a ter muito para andar, felizmente.
Amanhã, na RTP, Anabela Mota Ribeira estreia uma nova série do programa "Os filhos da madrugada". Amanhã, será o primeiro dia em que haverá mais dias de democracia do que de ditadura. Amanhã, será um bom dia para celebrar Abril. Será mais um dia, mas não será um dia a mais. Todos os dias contam. Todas as pessoas contam.
Bem, estava aqui tão distraído a ouvir a "Balada de Outono", de José Afonso, que nem dei pela chegada do verão.
"A sério, que se dá bem com os seus irmãos? Vejo que ainda não fizeram partilhas", costumava dizer, a brincar, uma pessoa da família. É por pensar em famílias desavindas, pela disputa do dinheiro e propriedades; é por pensar na inveja e na mesquinhez, que tendo a não gostar da ideia de herança. Mas, por outro lado, há uma ideia de continuidade, de memória, que me enternece. Como se ficássemos mandatados para sermos guardiões de tesouros, segredos e prazeres. De guardar e eternizar um legado.
Uma amiga, que insiste em manter-se dentro do meu peito, nomeou-me guardião dos seus discos. Quando ia a sua casa, insistia sempre que fosse eu a colocar a música que acompanhava os nossos jantares e as nossas conversas: às vezes sérias, às vezes divertidas, muitas vezes preguiçosas. Mais tarde, intermitentes, quando os meus filhos passaram a desaguar em sua casa e a virá-la do avesso. O seu gosto pela música francesa (Léo Ferré, Jacques Brel); brasileira (Caetano Veloso, Elis Regina) ou portuguesa (José Afonso, José Mário Branco); está, agora, depositado (a seu pedido) em minha casa.
Recebi um tesouro. Para mim? For me, Formidable!
Cantou-se a Grândola, em São Tomé. Faltou Relvas, para ser perfeito.