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- Pai, ainda falta muito para chegarmos?
- Um bocadinho.
- Podemos fazer qualquer coisa, para passar o tempo?
- Podemos fazer rimas.
- Começas tu?
- Pode ser: Vamos para o norte / Ou vamos para o sul
- Ahhhh... hummm...
- Desculpa, filho, não deve haver muitas palavras a rimar com "sul".
- Já sei. Podes repetir?
- Sim. Vamos para o norte / Ou vamos para o sul.
- Vamos para a praia / Ou para a swimming pool.
Viu, Godinho? Se um dia destes, precisar de alguém para ajudar nas letras...
(que, como sabemos, não é o seu forte...)
O avô era comerciante, de profissão; e comediante, por vocação. Apesar de amador, neste campo, usava as técnicas dos profissionais: escolhia um alvo e não largava o osso. Dessa vez, escolheu a primeira licenciada da família e carregou no formalismo e nos salamaleques:
- Sô Tora, obrigado por nos ter brindando com a sua elegância.
A "doutora" sorria.
- E não me refiro, apenas, à escolha da indumentária, mas também da excelente forma física em que se encontra.
A "doutora" tentava disfarçar algum embaraço.
- Permita-me que lhe sirva um copo de vinho. Espero que este bairrada de reserva esteja à altura da sua fineza.
- Obrigada.
E, depois, outro. E, ao terceiro:
- É melhor, não, que eu não estou habituada a beber.
- Pois eu diria que este bairrada devolve, a Vossa Excelência, a cor exigida pela beleza do seu rosto.
- Já percebi que estou a ficar muito corada.
- Eu diria "coradinha", uma cor que lhe realça a nobreza, que lhe é natural.
É, então, que o tio se aproxima:
- Ó avô, não seja chato!
- Estou só a garantir que a doutora não passa sede, já que você não tem essa preocupação.
E, virando-se para a "doutora" solta um:
- Permita-me só um bocadinho.
- Mas só um bocadinho!
O tio volta à carga.
- Ó avô, não vê que a menina não quer mais vinho.
O avô não perde o tom.
- Fique a saber, cavalheiro, que "a menina", como diz, já é "doutora".
- Mas está a ser chato, avô, não vê?
É, então, que o avô muda de tom.
- Chato és tu. Sempre a interromper... e digo-te mais...
Volta-se para nós, pisca o olho e vira-se, de novo, para o tio.
- ... e digo-te mais: se não estivesse aqui a doutora, chamava-te cabrão.
- Ó pai, o "Quebra-Nozes" é um bocado música clássica para crianças. Não é?
- É.
- Então, esta música é um bocado Tchaikovsky para jovens. Não é?
- Para jovens como tu ou como eu?
- Como eu, pai.
- Ai sim?
- Sim, tu já és um jovem um bocado cota.
- Mas, vamos todos morrer, pai?
- Vamos, filho.
- Mas isso não é justo
- Pois não, mas são as regras do jogo.
- E não dá para mudar?
- Não. Mas temos um plano.
- Qual é?
- Mais cedo ou mais tarde, vamos todos morrer, não é? Portanto, o plano é... mais tarde.
- É, esse, o plano?
- É. Eu sei que não parece grande coisa, mas é o que temos. Tentar ter uma vida boa, com os que mais amamos: ter cuidado com a saúde, comer poucos doces, fazer ginástica, ir à escola, ser um bom menino, fazer amigos, amar a família... é por aí.
- Ah... mesmo assim, estou triste.
- E deves estar, filho. Ficamos tristes, quando nos morre alguém tão especial.
- E já não volta?
- Não. Mas não te esqueças do plano. Já que, mais cedo ou mais tarde, vamos todos morrer, vamos fazer tudo para que seja... mais tarde.
- Sabes, pai, hoje foi dia de tirar fotografias na escola.
- Ai sim?
- Sim, ficaram espetaculares.
- Mas, já as viste?
- Não, pai.
- Então, como é que sabes que ficaram espetaculares?
- Com uma carinha destas, como é que achas que ficaram?!