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"O senhor doutor tem tanto para fazer e anda aqui a perder tempo connosco". A tia estava incomodada. Tinha vindo trazer um leitão ao senhor doutor - para agradecer "por tudo" - e, agora, o senhor doutor agradecia o agradecimento, perdendo tempo connosco. Passeava pelas ruas, apontava estátuas, descrevia igrejas e museus, entrava em lojas de quadros. "Oh, senhor doutor!" De nada serviam as nossas explicações: que o "senhor doutor" era de história e gostava de museus, que era das artes e gostava de lojas de quadros. Em vão. A tia podia não perceber muito de história - nem de quadros, nem de estátuas, bem de livros - mas percebia de trabalho (oh, se percebia!) e aquilo não era trabalho. E, certamente, que o senhor doutor ("Não lhe chamem 'Manel', meninos, tenham respeito!") precisa de trabalhar, que ninguém chega a doutor sem trabalhar muito, sem queimar as pestanas. De modo que seguimos o passo estugado, da tia, e deixámos o doutor, apeado, a encolher os ombros e a piscar os olhos. Acho que o senhor doutor não percebeu a tia. Voltei paras trás, para lhe explicar, mas continuou sem perceber. Acho que vou ter que lhe fazer um desenho, que o doutor é das artes.
"Para Carlos Bunga", diz-nos a nossa interlocutora, "a casa é onde nós estamos. E essa casa devia moldar-se a quem vive dentro dela. Sabemos, no entanto, que nós é que temos que o fazer." Carlos Bunga é um artista plástico português. Tem origens africanas, viveu em bairros da lata onde as casas, precárias, são moldadas em função de quem lá vive. Esticam, quando nasce mais um filho ou se recebe uma tia. Encolhem, quando já não é necessário, libertando os materiais para quem deles precisa. Essa experiência terá marcado as obras artísticas de Carlos Bunga, que tem vindo a ocupar alguns dos maiores museus do mundo, com as suas estruturas de cartão e fita adesiva: o precário e descartável, dentro de estruturas solidas, que ambicionam a eternidade.
"Carlos Bunga", insiste a nossa interlocutora, "é um nómada. Faz questão de não ter casa fixa. A casa vai sempre com ele". Lembrei-me de Gonçalo Cadilhe, o escritor-viajante. A dada altura, perguntaram-lhe porque é que insistia em ter casa, se raramente lá estava. Respondeu que precisava de ter uma casa, para onde voltar. Era a casa que fazia dele um viajante. Caso contrário, seria um migrante.
É engraçado, como podemos ter noções e relações tão diferentes com o conceito de casa. O que é que muda? Talvez, a casa de partida.
[Fotografia: Pedro Jafuno]