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Camilo faz 200 anos e permanece moderno. A sua vida dava vários filmes. Escreveu-a, em mais de 140 livros.
Foi um gosto conversar sobre o livro "Aqui Onde Ardo e Canto", com o escritor Francisco Mota Saraiva e com o professor Carlos Fiolhais, em Coimbra.
"Aqui Onde Ardo e Canto" é uma estreia surpreendente, do escritor, e exige, ao leitor, um mergulho em apneia - ou um salto no escuro - que implica o risco de perder os sentidos, até o livro ganhar sentido. Um livro forte, intenso e desconcertante, que, primeiro, nos obriga a ganhar coragem e, depois, a mantê-la até ao fim. Chegados ao fim, fica-nos colado à pele, como o cheiro do Africano no corpo e nos sonhos de Rosália, a preta.
Arde, mas não cura.
No sábado, vai haver uma tainada na aldeia de Melo. Põem-se umas mesas, cá fora na rua, e come-se e bebe-se com os escritores. Vai ser uma festa. Parece que os escritores gostam tanto da terra de Vergílio Ferreira, que começam a chegar hoje.
Para ouvir, aqui:
https://www.rtp.pt/noticias/cultura/festival-dedicado-ao-escritor-vergilio-ferreira_a1604065
Queria, desesperadamente, chegar ao fim deste livro. Porque me estava a incomodar. Nem sabia porquê. Depois, percebi. Era por causa do cheiro. O cheiro a humidade, a pó, a caruncho, a mofo, a naftalina. O livro fala de Portugal, depois de Abril, mas o cheiro é do regime anterior. Como assim? Então, e "As portas que Abril abriu"? e "O cheirinho a alecrim"? e "O dia inicial inteiro e limpo"? Porque me cheira assim?
No livro, uma jornalista portuguesa, a trabalhar nos Estados Unidos, regressa a Portugal para recontar uma das mais belas histórias do século XX: a Revolução dos Cravos. Fá-lo porque o mundo está um lugar muito feio e é preciso contar histórias bonitas ao mundo. Este ponto de partida ajuda a aumentar o desconforto. É que essa ideia, vinda de fora, não cola com a realidade, cá dentro.
A protagonista vai reencontrar o seu pai, com quem tem uma relação difícil, e vai tentar reencontrar alguns dos amigos do seu pai: são alguns dos principais heróis de Abril. Todos eles tiveram destinos diferentes. Todos nos transmitem uma tristeza sem fim. Todos nos remetem para o mesmo cheiro.
Chego, finalmente, ao fim do livro. Mas, em vez de me livrar dele, volto para trás e começo tudo de novo. No meio do cheiro (e do fumo, não tinha referido o fumo), há sinais de esperança que não tinha sentido na primeira leitura. É um livro memorável, como as personagens que lhe dão título. Tem a mestria de Lídia Jorge. E não nos facilita a vida...
Paul Auster, a escrever sobre livros e jornais, no livro 4 3 2 1.
"O encanto dos jornais era completamente diferente do encanto dos livros. Os livros eram sólidos e permanentes, e os jornais eram efémeros e finos, descartados logo que tinham sido lidos, para serem substituídos por outros na manhã seguinte, todas as manhãs um jornal novo para o dia novo. Os livros avançavam numa linha reta do princípio ao fim, ao passo que os jornais estavam sempre em vários sítios ao mesmo tempo, uma miscelânea de simultaneidade e contradição, com múltiplas histórias a coexistirem na mesma página, cada uma expondo um aspeto diferente do mundo, cada uma a afirmar uma ideia ou um facto que nada tinha a ver com a que estava a seu lado, uma guerra à direita, uma corrida de ovo e colher à esquerda, um edifício a arder em cima, uma reunião de escuteiras em baixo, coisas grande e pequenas misturadas (...)".
"Por uma arrepiante coincidência", sublinha Isabel Allende, "os aviões sequestrados nos Estados Unidos despedaçaram-se contra os seus objectivos numa terça-feira, 11 de Setembro, exatamente o mesmo dia da semana e do mês - e quase à mesma hora da manhã - em que ocorreu o golpe militar do Chile, em 1973. Este último foi um acto terrorista orquestrado pela CIA contra uma democracia. As imagens dos edifícios a arder, do fumo, as chamas e o pânico, são semelhantes em ambos os cenários."
Imortal, há muito tempo.