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O treino foi em terra, que havia tempestade no mar. O barulho da chuva - ora vai, ora vem - lembrava o som das ondas. Tudo se tornou monótono. "Vou pôr música, para animar", disse-nos o nosso capitão. A música dos Clash espalhou-se pelo pavilhão. Senti a metamorfose: de "índio da meia-praia", a "punk" da meia-idade.
O amor tem altos e baixos. Às vezes, dou por mim arrebatado, inebriado, embevecido. Outras vezes, recuo e vacilo. Lamento-lhe a pobreza, a decadência, o desleixo. Nessa altura, dá-me para ouvir esta música. "Morro de amor", diz o primeiro verso do "Fado Moliceiro", que faz renascer a minha paixão. Hoje é dia de festa e de amor. Na minha terra. Pela minha terra.
[O Fado Moliceiro junta três génios: Ary dos Santos, Carlos do Carmo e Carlos Paredes]
50 anos, faz este disco, 50. Meio século deste disco, de uma vida. A minha. Foi o Júlio quem mo deu. Primeiro, emprestou-mo. Ouviu-o de um lado e do outro, depois do outro lado e do outro e do outro. Tem dois lados, eu sei. Quem diria. Quando achei que já o tinha ouvido de todos os lados, depositei-o nas mãos do Júlio. "Fica com ele", disse-me. "Nem pensar". "A sério", insistiu, "tu gostas mais dele, do que eu". "Até pode ser, mas é teu". "Esquece, eu gosto mais de rock". "Mas, este, até tem um bocado de rock", digo-lhe. "É, mas tem demasiado Bob Dylan. E eu sou mais Rolling Stones". Certo. Dos Rolling Stones, o Júlio passou para os Metallica e para bandas que nem gosto, nem conheço. Eu fui para outros lados, mantendo o Godinho por perto, deixando o Júlio fugir para longe. Este é um disco de viagem. De tantas viagens. Os Sobreviventes.
Chegámos ao Porto, plenos de excitação. Íamos ver o Nick Cave, ao vivo. O Carlos veio-nos esperar de carro. "Podemos pôr uma musiquinha?", perguntou ele, "não tenho é Nick Cave, em cassete". Nesse tempo, copiavam-se os discos de vinil, que tínhamos em casa; para cassetes, para ouvir no carro. Os que tinham carro, claro. O Carlos roda a chave e um solo de sax, meloso, espalha-se pelo interior do Uno. Franzo o sobrolho. "Foi o mais parecido que encontrei". Reconheço a voz rouca de Leonard Cohen e continuo a estranhar o paralelismo. Naquela altura, para mim, Cohen era uma velha glória dos anos 60, que estava a envelhecer de uma forma duvidosa, como tantos outros da sua geração. Mesmo assim, o Carlos insistia: "acompanhem-me no refrão" e o Unu, em uníssimo, passou a gritar "There ain't no cure / There ain't no cure / There ain't no cure for love". O Uno, de vidros abertos, a serpentear pelas ruas da baixa. O Uno a espalhar amor e música e poesia e tabaco, pela cidade do Porto. Depois, entrámos no Coliseu para ver e ouvir o nosso herói. Mas, Leonard Cohen não me saía da cabeça. Ao ponto de achar, na altura, que também estava na cabeça de Nick Cave. De resto, continuo a achar.
"Eu vou botar um pouquinho de sotaque, um pouquinho só", disse Vinicius de Moraes, antes de oferecer, a Amália, o fado "Saudade do Brasil em Portugal". Foi registado, em 1970, num disco conjunto. Passaram mais de 50 anos, e Caetano (um eterno apaixonado por Amália e pelo fado) repete a gracinha. Bota um sotaque para cantar "Você-Você", com a maravilhosa Carminho - que já cantou o tema de Vinicius e está habituada a cantar com os deuses. A canção está aqui, com um vídeo a registar o momento, mas o disco "Meu coco" merece ser ouvido, de fio a pavio. Começa por nos cantar que "O português é um negro dentre as eurolínguas", para (espero não estar a dar com a língua nos dentes) nos levar aos mais variados "brasis", até desembarcar em "Você-você". Não é, no entanto, o fim da viagem. Depois de um "quase fado", com o bandolim a fazer de guitarra portuguesa, chega a certeza de que "Sem samba não dá". A chegar aos 80 anos, o mais jovem de todos nós, dá-nos um "best off" de inéditos: intemporal e contemporâneo, ousado e familiar. Caetano dá-nos uma obra prima. A obra prima do mano. O mano Caetano.
- Parabéns, D. Rosa, já sei que fez anos de casada!
- É verdade!
- E, então, como é que comemoraram?
- Ah, foi maravilhoso. O Armando trouxe-me um ramo de rosas vermelhas...
- Oh, rosas para uma Rosa!
- ... foi o que ele disse, e depois fomos jantar fora...
- Que bem!
- ... eu levei um vestido vermelho, ele uma gravata da mesma cor... depois, levou-me a dançar...
- Sim, senhor!
- É, eu adoro danças latinas.
- Bem, esse senhor Armando é um romântico!
- Acha?! Foi um dia igual aos outros.
- Ahhh...
- Não me diga que acreditou, que o Armando me levou a dançar?
Acreditei, por um Shegundo, confesso que acreditei. Teria sido bonito, para terminar o ano.
Normalmente, o lançamento de um disco não é assunto de noticiário. E nunca é abertura de noticiário. Mas, há 30 anos, foi. Lembro-me da TSF abrir o noticiário das 8 com guitarras distorcidas, sons industriais, eletrónica ambiental, ritmos tribais a desaguar na dança, e uma voz carregada de efeitos. Um OVNI, na rádio portuguesa. Um OVNI planetário, soube depois. Os pacifistas U2 desencadearam uma espécie de blitzkrieg artística. Eu, que era leitor do Blitz (e do Sete, do Público, do DN, do Expresso, e do NME e do Melody Maker...), fui apanhado pelo ataque surpresa. Os U2 mudaram tudo: da luz do sol, para as luzes de néon; da América para a Europa; do deserto para a metrópole; da flanela para o nylon; do rock puro e duro, para o rock sujo, industrial, eletrónico, rítmico, pulsante. Olhei, boquiaberto, para Bono - maquilhado, com óculos de mosca, repleto de brilhos - e esfreguei os olhos e os óculos. Um Bono mais Bowie do que Dylan. Nunca visto, nunca ouvido.
Nas últimas semanas, tenho andado a ouvir o novo disco da Rita Redshoes. Estamos em novembro e, por esta altura, é normal perguntarmo-nos se o disco, que estamos a ouvir, será, ou não, o disco do ano. Também já me fiz essa pergunta. Mas, também, já me fiz outra: "será que isso é assim tão importante?" A seguir, lembrei-me que, há dois anos, um dos discos mais bonitos que ouvi (nos últimos anos) foi o disco da Lena d' Água. E, no ano passado, maravilhei-me com o disco da Capicua, que tem a voz da Lena e, como o disco da Rita, é muito marcado pelo universo feminino e pela maternidade. Finalmente, lembrei-me que, há uns anos, a Paula Moura Pinheiro fez um programa em que juntou a Xana, dos Rádio Macau, e a Manuela Azevedo, dos Clã, para falarem do rock no feminino: coisa rara, em Portugal. As duas eram quase "as únicas". Felizmente, as coisas têm vindo a melhorar: a Rita é única, mas não "a única". E, isso, só pode ser bom. Já agora, o novo disco chama-se "Lado Bom" e é mesmo bom. E é lindo. Sai à mãe.
A dada altura, deixei de reconhecer um estúdio de rádio. Primeiro, a digitalização levou as cassetes e os leitores de cassetes; depois, os discos e os gira-discos; de seguida, os CD e os leitores de CD e, finalmente, o papel. Alguns estúdios são tão asséticos, que mais parecem laboratórios ou salas de operação. O estúdio, que me acompanhou nos últimos meses, tem as maquinetas necessárias, meia dúzia de discos, mas, sobretudo, tem papel impresso. O papel é muito útil. Ajuda os ouvidos de quem ouve (melhora a acústica) e aquece o coração de quem fala (o meu, está visto). Agora, chega a hora de me despedir deste estúdio e regressar a um estúdio mais convencional. Desses, a fugir para o moderno.