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Hoje, vim para o trabalho a ouvir a voz e a guitarra mágica de Tom Verlaine, nos Television. Ouvi o disco "Marquee Moon" e repeti a sensação de frescura e familiaridade que tive, quando o ouvi pela primeira vez. Cheguei aos Television, pela mão dos seus descendentes - um pouco à semelhança do que tinha acontecido com os Velvet Underground. Ouvi "Marquee Moon", com a voz de Verlaine (aguda e repleta de vibrato) e a guitarra rendilhada e virtuosa (mas isenta de virtuosismos estéreis) e pensei nas bandas que marcaram a minha adolescência: dos Felt aos Go-Beetweens, de Lloyd Cole and The Commotions a Siouxie and The Banshees, dos Echo and The Bunnymen aos Cocteau Twins. Pareciam que já estavam todos, ao mesmo tempo, em "Marquee Moon". O disco surgiu em 1977 - o ano seminal do punk. Não é, no entanto, uma herança datada. Quando ouvi, pela primeira vez, os Arcade Fire, senti que a herança dos Television estava lá. Tom Verlaine nunca alcançou a respeitabilidade de Lou Reed, nem foi tão inventivo como David Bowie (que o chegou a cantar), mas deixa um legado importante. Mesmo naqueles que nunca ouviram: nem o seu nome, nem a sua música.
Ryuichi Sakamoto está a morrer. Venceu um primeiro cancro, está a perder na luta contra o segundo. A primeira canção dele que me recordo de ter ouvido foi "Forbidden Colors". Foi na televisão, em teledisco (como, então, se dizia). Gostei, moderadamente. O cantor (David Sylvian) era demasiado parecido com os tipos dos Duran Duran. E eu estava a tentar sair dos Duran Duran. Depois, descobri que a canção era de um filme com o David Bowie. E eu estava a tentar entrar no David Bowie. Fique a meio da ponte.
Mais tarde, fui ver o filme "O Último Imperador", de Bernardo Bertolucci. Adorei o filme (é um dos filmes da minha vida) e a banda sonora. Procurei o autor. Eram dois: David Byrne (o gajo dos Talking Heads) e... Ryuichi Sakamoto (o tipo andava a perseguir-me). Ouvi o disco. Curiosamente gostei mais das composições do David Byrne, que eram mais "étnicas". As composições do Sakamoto eram mais "clássicas". E eu não gostava (nada) de música clássica. Mais, tinha medo de música clássica: a "Toccata e Fuga", do Bach, era música para filmes de terror; a sinfonia da banana, do Beethoven (aquela do "ba- na-na-naaa"), dava-me pesadelos. Mesmo assim, fui ouvindo e fui gostando, cada vez mais, do Sakamoto. Voltei atrás, para ouvir a banda sonora do tal filme com o Bowie. Era diferente, muito eletrónica. Fique baralhado, de novo.
Depois, disseram-me que ele tinha vindo de uma banda, uma espécie de Kraftwerk à japonesa. E fui ouvir outros discos. Que miscelânea! Tinha umas coisas pop muito comerciais, outras eletrónicas, outras que pareciam jazz, outras que pareciam clássica, mas com instrumentos eletrónicos. Depois, saiu uma canção com o David Bowie, que, afinal, era de um tal Iggy Pop, um imitador (pensei). E, a seguir, um disco com o tipo africano que cantava com o Peter Gabriel e vozes tradicionais japonesas e, até, uma canção em português, com um americano que tinha vivido no Brasil. Por essa altura, eu já estava completamente submerso na música de Sakamoto. Um génio: culto, criativo, curioso. Que observa, que absorve, e, depois, reescreve e arrisca. Conhece djs e experimenta a música eletrónica de dança (ele acha que os subgraves nos devolvem ao útero materno). Aproxima-se da bossa nova; lança discos de piano solo; e com pequenos ensembles; e com vastas formações orquestrais. Entra em casa de Tom Jobim, senta-se ao piano e edita um disco com o casal Morelenbaum. Um cidadão do mundo, que me abre ao mundo, continuamente.
Sakamoto é dos meus músicos e compositores preferidos. Acho que ele não iria gostar deste texto, tão cheio de passado. Ele sempre foi voltado para o futuro. Continua a ser. O cancro (sacana!) está a avançar e ele resolveu avançar também. Sentou-se ao piano e deu-nos o seu último concerto. O cancro devia era ouvir o piano de Sakamoto e chorar de vergonha.
Sakamoto explica tudo, aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=ZhzpwR19UN4
E toca piano, aqui:
Ter dois amigos ou familiares, que não se gostam, na sala de estar, é das coisas mais embaraçosas que existem. Tendencialmente, achamos que, se a pessoa A gosta de nós e a pessoa B também, elas devem-se gostar entre si. Infelizmente, descobrimos que, muitas vezes, não é assim. E passamos a ter que convidar um ou outro, alternadamente. Passa-se o mesmo, com os nossos heróis.
No livro "Verdade tropical", Caetano Veloso escreve acerca da surpresa que teve, ao descobrir que o seu herói, João Gilberto, não gostava de Chet Baker. Confesso que também fiquei surpreendido. E, mais ainda, ao descobrir, no mesmo livro, que o meu herói, Caetano, não gostava de David Bowie. Não dá a entender, diz, preto no branco, que não gosta. Sem se importar com os meus sentimentos. Bowie também é o meu herói (com Caetano e Godinho, compõe, talvez, a minha "Santíssima Trindade"). Bowie faria, hoje, 75 anos. Hoje, vou juntá-lo, na minha sala, com Caetano. Pode ser que resulte. Nem que seja "Just for one day". Veremos.
David Bowie morreu, há 5 anos. Antes de morrer, deixou um disco onde abordou a chegada da (sua) morte. Dizem que é uma obra-prima, mas confesso que, apesar de ter o disco, fiquei tão triste, que me faltou coragem para o ouvir.
O mundo lembra-me David Bowie. Em permanente, mudança.
Quando ouvi “Lazarus” e “Blackstar”, as novas canções de David Bowie, fiquei assombrado. São duas canções densas e soturnas. Os vídeos agravam, ainda mais, o negrume. Blackstar, o álbum, é um Requiem, percebemo-lo agora. Apesar de ter piscado o olho ao “mainstream”, nos anos 80, Bowie nunca nos facilitou a vida. Muito menos agora, depois da sua morte. O seu último disco é doloroso de se ouvir.
A morte de Bowie lembrou-me Amadeus, a peça de Peter Shaffer levada ao cinema por Miloš Forman. Na peça/filme, Mozart, moribundo, escreve uma missa fúnebre, que deixa inacabada. A encomenda de um Requiem, a Mozart, foi um prenúncio da sua própria morte, envolta em mistério. Só que, ao contrário de Mozart, Bowie sabia que ia morrer. E preparou a sua morte. E escreveu, conscientemente, a música da sua morte.
O Requiem, de Mozart, é uma música avassaladora. Mas, Mozart é um personagem histórico. Morreu muito antes de termos nascido. Bowie não. E isso, deixa-me com arrepios na espinha.
“Beatles ou Stones?”, perguntava alguém. “David Bowie”, respondia Sónia Tavares, dos The Gift, a sorrir. “Boa”, pensei eu. Hoje, ouvi “David Bowie” e não sorri. Ouvi “David Bowie”, pensando que iam falar do novo disco, lançado na sexta-feira, mas acrescentaram “morreu. A notícia foi confirmada, esta manhã, pelo seu filho…”. Ora bolas!
David Bowie representa aquilo que eu mais gosto na cultura pop: alta e baixa cultura, tradição e “avant-garde”, fascínio e inquietude. A sua música, pop-rock, mistura literatura, teatro, performance, cinema, artes plásticas. Bowie na televisão; Bowie na arena rock; Bowie na Broadway; Bowie em Hollywood; Bowie na galeria de arte; Bowie na pista de dança. Mudou, muitas vezes, de estilo musical, de estilo visual, criou personagens e chamaram-lhe camaleão, o que se tornou clichê.
Em 1990, Bowie passou por Portugal, numa digressão de despedida. O concerto foi no Estádio de Alvalade e eu estava em êxtase. Bowie poupou no cenário e gastou em repertório: de Space Oddity a Blue Jean. Depois, disse adeus. Mentiu, felizmente. Só voltou a retirar-se em 2004, por causa de um ataque cardíaco. Editou um disco em 2013 e outro na sexta passada, dia em que fez 69 anos. Agora morreu e não volta a mentir. Infelizmente. Bye Bye Bowie