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"No outro dia, estive na estalagem." A tia arqueou as sobrancelhas. "Na estalagem, onde trabalhou." Acenou com cabeça. "É muito bonita. A entrada, com aqueles azulejos, pequeninos, pintados à mão." Sorriu. "A salinha do café, com aquelas cadeiras de pele, baixinhas." Sorriu, de novo. "Não cheguei a ir à sala de jantar." Silêncio. "É bonita?" Encolheu os ombros. "A sala de jantar", insisti. "Nunca lá entrei", respondeu. "A sério? Trabalhou lá tantos anos!" "O pessoal da cozinha", disse, num fio de voz "não podia ir à sala." "Nem quando estava vazia?" Abanou a cabeça. Não. A nenhuma sala. Era, assim, o Portugal dos pequeninos. Dos pobrezinhos, do respeitinho. Gostava de ter ido à estalagem, com a tia. Não fui. Fecharam, as duas, há vários anos.
O som inicial dos trompetes anuncia uma jornada épica. Escolho os legumes e as facas e coloco a tábua de cortar na bancada. Descasco e corto nabos e chuchus, alhos e aipo. No final do primeiro andamento, a água com sal já ferve com os legumes. Lavo, escolho e escorro os espinafres. Sinto o drama a crescer. Pico alhos, coloco-os em lume brando com azeite, escorro o atum e junto-o aos alhos. Escolho tomates maduros e corto-os em cubos pequenos, enquanto cresce a tensão entre as cordas e os sopros. Os tomates caem no tacho em conjunto com as azeitonas e as alcaparras. No terceiro andamento, danço, com copos, pratos e talheres, digo a “vida é linda”, mas dói-me a alma por ter que abafar as cordas com o som da varinha mágica. Coloco a rúcula e os agriões na saladeira, vêm-me as lágrimas aos olhos: não sei se é do “Adagietto” se é da cebola. Preparo o “Finale”, ponho a mesa e sirvo a sopa. A cavalaria chega a passos largos. Fim. Estou exausto. Ponho um disco dos Duran Duran, para descomprimir. Cá em casa, acham que eu vou de Mahler a pior.
Ljubomir Stanisic é um cozinheiro que enriqueceu a cozinhar, para ricos; e a fazer televisão, para pobres. Há uma semana, resolver estacionar à porta da Assembleia da República para fazer uma greve de fome e insultar os representantes da República, com a cobertura dos media, que adoram pessoas "fora da caixa". Hoje, depois de ter sido atendido pelo SNS (que, coitados, andam com pouco que fazer) resolveu comparar o primeiro-ministro português a Milošević. Algumas pessoas acharão graça à comparação com o ex-presidente sérvio, esquecendo, talvez, que este foi preso pelo Tribunal Penal Internacional, sob a acusação de crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Esta manhã, disse à imprensa que "há 17 anos, passámos 21 dias de fome e derrubámos o filho da p***". Não disse que está em Portugal, há 23 anos.