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Trafulhices

por Miguel Bastos, em 27.06.24

futebol.jpg 

- Então, porque é que os nossos produtos não a estão a vender? - perguntou o diretor.
- Estão vender, chefe. Menos, mas estão.
- Eu sei que estão, mas estamos muito longe da liderança. Alguém quer-me dizer porquê?

E, então, chegavam as justificações:
"por causa das importações diretas", "das promoções agressivas", "das regras da grande distribuição", do "dumping".

- Estamos a falar de coisas fora da lei? Se estamos, têm de ser denunciadas - continuava o diretor.
- Anda, para aí, muita trafulhice, chefe. Por isso é que os tipos estão a vender mais do que nós.
- Mas, nós já estivemos muitas vezes na liderança.
- Pois, chefe, mas agora...
- "Mas agora"... Acham, mesmo, que só há trafulhice quando estamos a perder? Ninguém acredita nisso.
- Acha que não?
- Só se for no futebol. Mas não lhes serve de nada.

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Giro de Itália

por Miguel Bastos, em 28.05.24

marcello.jpg 

- Viste quem é que ganhou o Giro de Itália?
- Não. Para mim, foi este. É sempre.

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Despedido

por Miguel Bastos, em 05.12.23

george clooney.jpeg 

Alguma vez foram despedidos? Eu já. Viram o filme "Nas Nuvens"? Eu vi. No filme, George Clooney é um especialista em despedimentos (claro que a profissão tem outro nome, é um perito em "downsizing"). Diz o especialista: "Trabalho para uma empresa que me cede a cobardes, que não têm coragem para despedir os seus próprios funcionários". E explica que têm boas razões para isso: "Porque as pessoas fazem coisas loucas, quando são despedidas". O George ainda não sabe, mas o seu lugar também está a ser colocado em causa. No meu caso, eu também não sabia, mas já desconfiava.
 
Há uns anos, tive direito ao meu George. Claro que não tinha a pinta do original, mas, mesmo assim, tinha a sua pinta. Vou-lhe chamar Jorge (à portuguesa) e adiantar que usava dois sobrenomes - condição importante para perceber a combinação que fazia entre o militar disciplinado e o "cowboy" insolente. Um beto, que dizia palavrões em telefonemas de trabalho. Um profissional, que tratava as pessoas por "você" em "tefonemas" pessoais.
 
A conversa do Jorge foi breve: "Vamos lá a isto"; "Aqui está o contrato de rescisão"; "Este é o valor de indeminização, obrigatório por lei"; "Esta é a carta para o desemprego". Depois, veio um aperto de mão, a transmitir confiança, acompanhado de um "Boa sorte" e, finalmente, um "Vemo-nos por aí". Aqui, não resisti e devolvi-lhe um sorriso amarelo, acompanhado de um "Nós nunca mais nos vamos ver, pois não?". Respondeu-me um vacilante "Nunca se sabe...", que eu atalho dizendo-lhe nos olhos: "Ouve, Jorge, eu sei que o teu trabalho é despedir pessoas e que estás a tentar ser o mais profissional possível. Mas esta era a minha vida. E, agora, acabou. E, a menos que mandem alguém, como tu, para acabar com a tua, nós não nos vamos voltar a encontrar, pois não?". "Não percebi", diz o Jorge a tentar recuperar o equilíbrio. "Se fores despedido, podemo-nos encontrar no Centro de Emprego ou na Segurança Social ou assim. Caso contrário, é pouco provável, não é?". O Jorge esboçou um sorriso e despediu-se. Mas só de mim. Como nunca mais o vi, presumo que continue a trabalhar.

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Spoiling

por Miguel Bastos, em 22.11.23

loura.jpg 

- Eu não quero fazer fazer "spoiling", mas podes-nos contar mais um bocadinho da história? - perguntou a jovem entrevistadora.
- Bem, - respondeu a jovem atriz - penso que muita gente já conhece a história...
- Ai, sim?!
- Sim, afinal baseia-se num conto de Eça de Queirós.
- Ahh, não tinha realizado.

"Pois não", pensei eu com os meus botões, "por isso é que o Manoel de Oliveira resolveu arriscar".
Já agora, uma das melhores formas de evitar o "spoiling" é apostar no "reading". Estão a realizar? 

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Nouvelle Vague?

por Miguel Bastos, em 21.11.23

milei.jpg 

A Argentina tem um novo Presidente. Javier Milei tem um ar de "Nouvelle Vague" francesa, mas é da velha guarda sul-americana.

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Ser alemão

por Miguel Bastos, em 06.11.23

kraftwerk.jpg 

A questão é identitária: como ser alemão, depois do nazismo e da destruição da Alemanha, no final da Segunda Guerra Mundial? Qualquer afirmação identitária, no final dos anos 60, fazia soar o alarme e ressuscitar fantasmas. De resto, ainda faz. O livro de Uwe Schütte sobre os Kraftwerk fala, abundantemente, sobre o assunto. Nascidos na Alemanha Ocidental, na cidade Düsseldorf, em plena região industrial do Reno-Ruhr, os Kraftwerk queriam fazer um tipo de música que se inspirasse e refletisse a cultura alemã. Começaram por negar todos os clichês da música pop-rock anglo-americana: os cabelos compridos, as calças de ganga, os casacos de cabedal, as poses "sexy", as guitarras. De seguida, assumiram a ideia estereotipada dos alemães: frios, disciplinados, eficientes, burocráticos. Visualmente, pareciam cientistas ou engenheiros ou académicos ou gestores. Definiram-se - não como artistas ou músicos - mas, como "trabalhadores". Era tudo tão exagerado, que alguns perceberam logo que havia um lado profundamente irónico e subversivo. Outros não perceberam, ou demoraram mais tempo a perceber. Exploraram temas relacionados com a ciência e a tecnologia, desenvolvendo (e personificando) a relação homem/máquina. E fizeram-no, buscando inspiração em várias referências artísticas alemãs, da República de Weimar: do cinema, da fotografia, do design ou da arquitetura. No fundo, defende Uwe Schütte, os Kraftwerk foram buscar muitas das ideias de futuro, nesse passado: fosse no cinema de Fritz Lang, ou no design da Bauhaus. Essa opção artística ajuda-nos a perceber porque é que, ao fim de mais de 50 anos, ainda faz sentido um livro com este título "Kraftwerk: Future Music from Germany". Porque é que os Kratfwerk ainda são futuro.

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A burra

por Miguel Bastos, em 11.04.23

burra.jpg 

Saímos do cinema, a meio do filme. "Irreversível", de Gaspar Noé, tinha sido anunciado como um "filme-choque" (coisa que, normalmente, não me agrada), mas estava coberto de boas críticas e de recomendações de amigos. Tentámos a nossa sorte, numa tarde de domingo. O filme avançava, em espiral, praticamente sem imagem, mas explicitando tudo em som: sexo, violência e terror. Confirmou-se: "filme-choque". Saímos, a meio, atordoados, com a cabeça e o estômago às voltas. Saímos para a avenida. Caminhámos, vagarosamente. O ar fresco e o bom tempo foram-nos recompondo. Olhámos um para o outro, à porta do museu: uma retrospetiva de um artista contemporâneo. "Entramos?". Entrámos. "Artista provocador, que aborda a sensualidade e a sexualidade, de forma crua, irreverente e provocadora. Um olhar inquietante e blá, blá, blá, e blá, blá, blá". Instalou-se, de novo, a sensação de enjoo. Voltámos para casa. Comemos em frente à televisão, na companhia de um programa de canções. Parece que um dos concorrentes tem uma burra. "Tens uma burra?", pergunta a Catarina. "Tenho". "Eu também. Podíamos juntar as duas, para ver se acasalavam". Rompemos numa gargalhada. "Ai, que parvoíce", diz a Catarina, "se são duas burras, não podem acasalar". Voltámos a rir. Tanto e tão alto, que (soubemos depois) deixámos a vizinhança preocupada. Não sei se estão a ver o filme: ligar a televisão foi a decisão mais inteligente do dia. Fomos salvos pela burra da Catarina.

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As bruxas

por Miguel Bastos, em 16.03.23

bruxas.jpg 

A Segunda Guerra terminava e começava uma nova. A Guerra Fria fez crescer o medo do comunismo e trouxe um clima de paranóia, vigilância e perseguição para o interior dos Estados Unidos. Os mais afetados foram, sobretudo, os intelectuais e os artistas. Este período ficou conhecido como "macarthismo". O processo como a "caça às bruxas". Foi neste contexto, que o dramaturgo Arthur Miller voltou ao caso das Bruxas de Salém. A história, verídica, remete para o século XVII, quando várias pessoas de uma pequena povoação foram perseguidas e julgadas por bruxaria. Arthur Miller descreve bem o ambiente de intimidação e horror, em que uns acusam outros, em que uns são jogados contra os outros, num processo irracional e autodestrutivo.
 
Numa altura em que a qualidade da democracia é ameaçada pelo crescimento do populismo, pelo poder desregulado das redes sociais, pela nova cultura do cancelamento, por novas caçadas a bruxas, o encenador Nuno Cardoso leva a peça As Bruxas de Salém, ao palco do Teatro Nacional São João, no Porto. Arrepiante. Inquietante.
 
[Fotografia: TNSJ]

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O menino dos filmes

por Miguel Bastos, em 13.03.23

 

Era uma vez um filme. Nesse filme, havia um menino que gostava de fazer filmes. Fazia filmes, para lidar com a realidade. Fazia filmes, para fugir da realidade. Fazia filmes, para aumentar, diminuir, distorcer a realidade - de acordo com o seu desejo. Esse filme, sobre o menino que fazia filmes, é de Steven Spielberg. E toda a gente percebe que aquele menino é ele próprio, dentro de um filme. É ele, próprio, menino: a sonhar cinema, a pensar cinema, a fazer cinema. É o cinema entre a razão e o coração, entre a arte e a técnica, entre a memória e a criação.
Ontem, o filme passou despercebido nos Óscares. Como não sou cinéfilo, nem costumo seguir a cerimónia dos Óscares, não entro na discussão sobre qual era o melhor filme e se houve, ou não, justiça nos prémios atribuídos. Só sei que "The Fabelmans" é um filme muito bonito e não devia passar despercebido. Um filme que ajuda a perceber o Spielberg criador - o seu cinema, mas, também, o cinema em si.

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Um urso para Canijo

por Miguel Bastos, em 28.02.23

 canijo.jpg

Este fim de semana, o cinema de João Canijo foi premiado, em Berlim. Hoje, tropecei com este texto, no meu computador.
 
2002 era futuro. 1999 e 2001 também foram. É estranho falar do futuro, com tempos verbais do passado. Mas, de facto, no passado, falava-se mais do futuro. Nos anos 70 e 80 vivemos o futuro com o “Espaço: 1999” ou o “2001: Odisseia no Espaço”. Eu escolhi o 2002, para a minha odisseia: ver o meu primeiro filme no cinema. O Estúdio 2002 tinha aberto, há pouco tempo. Na altura, os cinemas-estúdio eram o futuro. Eram mais pequenos, mais confortáveis, mais modernos. O Estúdio 2002 tinha espelhos no tecto, paredes pretas, carpetes vermelhas, cadeiras brancas. Era o local ideia para ver um filme do James Bond.
 
A cortina (vermelha) abriu-se e os meus olhos deslumbraram-se com o genérico do senhor Bond: tons escuros, ambiente de mistério e uma luz (vermelha) a sair de uma pistola, com o nome dos artistas. O cinema e o filme pareciam maravilhosamente unidos aos meus olhos. A simbiose era perfeita: luxo, charme, elegância e sedução - na tela e fora dela. De tal modo, que tive esperança de encontrar James Bond, ao intervalo, a beber um Martini, ao balcão - “shaken, not stirred”. O 2002 era um local suficientemente requintado para receber o agente secreto mais elegante do mundo. Infelizmente, o senhor Bond não estava no bar e, também, não o vi à saída. Olhei o cartaz de “Octopussy - 007 Operação Tentáculo” e pensei que tinha escolhido o melhor local para ver o filme.
 
Numa das últimas vezes que voltei ao Estúdio 2002, o filme era bem diferente: “Sapatos Pretos”, de João Canijo. O filme conta a história de uma mulher, presa a um homem machista e violento. Canijo já estava especializado em retratos de Portugal. Um Portugal de “faca e alguidar”, em oposição ao “país de brandos costumes”. Um Portugal feio e sórdido, que contraria o “jardim à beira mar plantado”. No filme, a protagonista tenta mudar de imagem: pinta o cabelo, compra roupas novas, aumenta o peito, arranja um amante. Quer mudar de vida e, para isso, pensa matar o marido. Assim contado, podia ser uma história de telenovela ou uma comédia, mas o filme é tudo menos isso. A dada altura, há uma cena particularmente violenta, que chocou muitas pessoas da plateia - ao ponto de ter sido necessário chamar uma ambulância para socorrer uma senhora. Antes da projecção, tinha falado sobre essa cena numa entrevista com o realizador, que, agora, olhava para mim, atónito, surpreendido com as sirenes, os bombeiros e a aflição da senhora.
 
Não sei se foi por influência do filme, mas olhei à volta e o meu 2002 também me parecia velho e gasto. No filme não havia nada de glamoroso na transformação física da personagem principal: aquele louro era de actriz de novela mexicana, as roupas eram mau gosto, o amante era um galã de pacotilha. O Estúdio 2002 estava parecido: as carpetes estavam gastas, as cadeiras encardidas, os espelhos fora de moda. Voltei a sentir uma estranha união entre o cinema e um filme, mas desta vez pelas piores razões. 2002 já era passado.
 

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