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"Na boca da barra e mesmo defronte / Daquela janela virada pr'ó mar". Lembrei-me do Tristão, neste dia feliz.
Lembrei-me desta, por causa do dia dos gatos.
- Este gajo não canta nada.
- Não sejas bruto, canta muito bem.
- Achas? Parece um gato assanhado!
- Aquilo é uma técnica.
- Uma técnica, para cantar assim? Não me lixes!
- Sim, muitos cantores usam esta técnica.
- E os gatos também, para chamar as gatas.
Eu ouvi tudo, mas não disse nada. Como gosto de gatos, fiquei caladinho.
Que nem um rato.
Rita Redshoes disse, no Jornal 2 da RTP, que, durante muito tempo, ficava incomodada com o facto de evocarem, repetidamente, a sua beleza. Sentia que o seu trabalho era desvalorizado. Lena d'Água também disse que "era tão gira, que as pessoas só falavam de mim e esqueciam-se da música".
Uma semana depois, o Festival da Eurovisão continua na minha cabeça. Apesar das explosões de luz e cor, e de todos os excessos de botox, silicone, laca, maquilhagem, tatuagens, cabeleiras, purpurinas, lantejoulas e bailarinos, a verdade é que (pasme-se!) havia ali canções. A nossa, por exemplo, é muito boa. A minha preferida - a francesa "Voilá" - é um arrepio. O cantor suíço é muito interessante. E, mesmo, a canção italiana - que me tinha parecido, apenas, um glam/hard rock estereotipado - cresceu com as audições seguintes.
Curiosamente, poucos repararam na canção da Bélgica ("The Wrong Place"), que me tem acompanhado por estes dias. Os Hooverphonic são uma banda muito respeitável, que teve algum sucesso na segunda metade dos anos 90. São contemporâneos e próximos de bandas como os Portished, Air ou Goldfrapp. Bandas que misturavam uma certa pop dos anos 60; com bandas sonoras de John Barry ou Ennio Morricone; uns toques de dub, jazz, bossa nova e easy listening; e o recurso a ritmos hip-hop, eletrónica e "samples". Por estes dias, tenho andado a (re)ouvir os Hooverphonic e arredores. Nunca pensei que o fizesse, por causa do Festival da Eurovisão. E a canção é muito boa. Terá sido a canção certa para o local errado?
Quando eu era mais novo, gostava muito de desfolhar livros. Mas, depois, chegaram os talibãs a dizer "isso não se diz" e mais não-sei-quê. Passei, então, para as canções. Andei anos a traulitar a "Folheada", da Simone. Ainda gosto.
(Ouvimos Godinho, à hora de dormir)
- Esta música pareces tu a brincar com o mano, diz o mais velho.
- Porquê?, pergunto eu.
- Repara na letra: "Se morreres só te peço/Da morte volta sempre em vida".
- E...?
- Parecem as vossas brincadeiras, quando o mano te quer matar e tu começas a impor condições.
É verdade, costumo negociar as condições da minha morte com o mais novo. Eis alguns exemplos:
- Pai, vou-te matar!
- Ok, filho, mas mata-me ao pé do sofá, para eu cair com algum conforto.
Ou:
- Pai, vou-te dar um tiro.
- Certo, mas aqui está muita gente. Mata-me num local onde eu tenha mais privacidade.
Ou, ainda:
- Oh não, pai, acho que vou morrer!
- Tudo bem, filho, podes morrer. Mas, não te esqueças que o jantar é às oito. Se te atrasares, a mãe fica preocupada.
Eu e os meus filhos morremos muito, mas sempre com responsabilidade. Deve ser o amor, "Às vezes o amor".
Hoje, lembrei-me desta canção da Dora - que é fresca que nem uma alface e boa para afastar a depressão. Mas não chega. O tempo está mau: com geada no interior; neve nas terras altas; mar encrespado na orla costeira; chuva e vento fortes, em todo o país. Precisamos, todos, de ter um comportamento responsável e fazer a nossa parte: vestir um casaquinho.
No pós-25 de Abril, afirmou José Jorge Letria, a urgência dos cantores em defender causas e tomar posições prejudicou a qualidade artística. Até José Afonso, disse, o maior deles todos, fez discos onde a qualidade de algumas canções foi sacrificada em nome dessa urgência.
Em 2020, Sérgio Godinho fez uma canção urgente, para responder à pandemia. Chamou-lhe o "O novo normal": uma expressão banalizada por estes dias. Se vai ficar como um clássico de Godinho só o tempo o dirá. Mas é uma grande canção (o coro é lindíssimo). E a urgência do que deve ser dito, agora, não tem, necessariamente, que lhe toldar o futuro. Vejo, até, futuro na expressão "O novo normal". Porque, somando quase 50 anos de canções, o mestre Godinho continua a ter a capacidade de transformar "uma frase batida" num hino poético. Como n' "O primeiro dia".