Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Ninguém fugiu à classificação, para descrever Rita Lee. Parecendo muito, pareceu-me pouco. Lembrei-me de Caetano Veloso e da sua resistência inicial ao rock, ainda nos anos 50. Comparando com a riqueza da música brasileira, o rock pareceu-lhe coisa pouca. Tão demasiado simples - nos ritmos, nas melodias, nas harmonias - que lhe pareceu simplório. A rebeldia também não o seduziu. Eram, apenas, meninos ricos, de um país rico, armados em rebeldes. Mudou de opinião, com a chegada dos Beatles e dos Stones. De seguida, acolheu o rock, no tropicalismo - movimento que inventou com a sua tribo de baianos (Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé) e, ainda, Nara Leão e Os Mutantes. Os Mutantes (estive a ouvi-los, esta manhã, e senti a estranheza de sempre) eram a banda de uma jovem, muito jovem, Rita Lee. Os tropicalistas juntavam a MPB - que já abarcava vários estilos - com poesia de vanguarda, cultura pop e rock psicadélico. Voltei ao (precioso) livro de Caetano, "Verdade Tropical". Escreve Caetano: "Depois que voltei de Londres, nos anos 70, Rita Lee se tornou, com um trabalho de excelente qualidade e grande sucesso, a roqueira-mor do Brasil." Mais à frente lamenta: "Mas a própria Rita (...) trazia de volta a divisão entre MPB e rock que o tropicalismo tentara superar." A verdade é que Rita gostava mesmo de rock. No entanto, quando carregava no rock, eu pensava "que pena". Uma cantora, compositora, letrista, cheia de Brasil, que, às vezes soava "apenas" a mais uma roqueira - como tantas outras, espalhadas pelo mundo. Mas Rita era um mundo. E era, ao mesmo tempo, profundamente brasileira. Talvez por isso, em Portugal - onde se ouve pouco ou nenhum rock brasileiro - Rita tenha sido, sempre, uma exceção. Mais que rainha, mais que rock, mais que brasileiram, Rita foi única. Foi Rita.
Pelé morreu. Na rádio, na televisão, nos jornais, lembram o epíteto: "rei". O rei Pelé. O meu coração republicano lembrou-se, no entanto e de imediato, que Pelé foi ministro do desporto, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Um homem negro, pouco escolarizado, vindo da pobreza, catapultado (pelo futebol) para o estrelato mundial, era, agora, ministro. Poucos anos depois, outro negro famoso tomou posse como ministro (desta vez, da cultura): Gilberto Gil. Não faço ideia se foram bons ministros, mas não posso deixar de pensar o quão inspirador terá sido, para tantos jovens negros e pobres, ver dois dos seus serem empossados no cargo de ministros. Aqui, os dois posam para a fotografia. Há um terceiro, na fotografia: Caetano Veloso. Um "negro quase branco", que nunca foi ministro, mas que, há muito, reina no meu coração republicano.
As memórias têm cheiro. Os discos também. Este, cheira a cera. Daquela tradicional portuguesa, que se punha no chão de tábua corrida. O disco é brasileiro, bem sei: Caetano e Chico - os dois maiores da MPB - "Juntos e ao Vivo". Ouvimos muitas vezes, lá em casa. "Quando eu chego em casa nada me consola". Enquanto passávamos o esfregão de aço, para retirar a cera velha. "Você está sempre aflita". Enquanto varríamos o pó. "Lágrimas nos olhos, de cortar cebola". Enquanto passávamos a esfregona. "Todo o dia ela faz tudo sempre igual". Enquanto espalhávamos cera nova. "Todo dia eu só penso em poder parar". Enquanto puxávamos o brilho. "Eu quero é dar o fora". Quem não? Quem nunca? Caetano e Chico. Ah, aqueles dois! Aqueles dois sabiam da vida. Aqueles dois sabiam de nós. Encerar tornava-se poético, com Caetano e Chico a cantar o quotidiano. Devíamos-lhe isso. Pagámos-lhes, com cheiro a cera fresca, portuguesa, acabada de pôr.
Não me adianta pensar em independência. Nunca irei conseguir.
"Eu vou botar um pouquinho de sotaque, um pouquinho só", disse Vinicius de Moraes, antes de oferecer, a Amália, o fado "Saudade do Brasil em Portugal". Foi registado, em 1970, num disco conjunto. Passaram mais de 50 anos, e Caetano (um eterno apaixonado por Amália e pelo fado) repete a gracinha. Bota um sotaque para cantar "Você-Você", com a maravilhosa Carminho - que já cantou o tema de Vinicius e está habituada a cantar com os deuses. A canção está aqui, com um vídeo a registar o momento, mas o disco "Meu coco" merece ser ouvido, de fio a pavio. Começa por nos cantar que "O português é um negro dentre as eurolínguas", para (espero não estar a dar com a língua nos dentes) nos levar aos mais variados "brasis", até desembarcar em "Você-você". Não é, no entanto, o fim da viagem. Depois de um "quase fado", com o bandolim a fazer de guitarra portuguesa, chega a certeza de que "Sem samba não dá". A chegar aos 80 anos, o mais jovem de todos nós, dá-nos um "best off" de inéditos: intemporal e contemporâneo, ousado e familiar. Caetano dá-nos uma obra prima. A obra prima do mano. O mano Caetano.
Ter dois amigos ou familiares, que não se gostam, na sala de estar, é das coisas mais embaraçosas que existem. Tendencialmente, achamos que, se a pessoa A gosta de nós e a pessoa B também, elas devem-se gostar entre si. Infelizmente, descobrimos que, muitas vezes, não é assim. E passamos a ter que convidar um ou outro, alternadamente. Passa-se o mesmo, com os nossos heróis.
No livro "Verdade tropical", Caetano Veloso escreve acerca da surpresa que teve, ao descobrir que o seu herói, João Gilberto, não gostava de Chet Baker. Confesso que também fiquei surpreendido. E, mais ainda, ao descobrir, no mesmo livro, que o meu herói, Caetano, não gostava de David Bowie. Não dá a entender, diz, preto no branco, que não gosta. Sem se importar com os meus sentimentos. Bowie também é o meu herói (com Caetano e Godinho, compõe, talvez, a minha "Santíssima Trindade"). Bowie faria, hoje, 75 anos. Hoje, vou juntá-lo, na minha sala, com Caetano. Pode ser que resulte. Nem que seja "Just for one day". Veremos.
"A sério, que se dá bem com os seus irmãos? Vejo que ainda não fizeram partilhas", costumava dizer, a brincar, uma pessoa da família. É por pensar em famílias desavindas, pela disputa do dinheiro e propriedades; é por pensar na inveja e na mesquinhez, que tendo a não gostar da ideia de herança. Mas, por outro lado, há uma ideia de continuidade, de memória, que me enternece. Como se ficássemos mandatados para sermos guardiões de tesouros, segredos e prazeres. De guardar e eternizar um legado.
Uma amiga, que insiste em manter-se dentro do meu peito, nomeou-me guardião dos seus discos. Quando ia a sua casa, insistia sempre que fosse eu a colocar a música que acompanhava os nossos jantares e as nossas conversas: às vezes sérias, às vezes divertidas, muitas vezes preguiçosas. Mais tarde, intermitentes, quando os meus filhos passaram a desaguar em sua casa e a virá-la do avesso. O seu gosto pela música francesa (Léo Ferré, Jacques Brel); brasileira (Caetano Veloso, Elis Regina) ou portuguesa (José Afonso, José Mário Branco); está, agora, depositado (a seu pedido) em minha casa.
Recebi um tesouro. Para mim? For me, Formidable!
O programa "Portugueses no Mundo" está no ar, há vários anos, na Antena 1. Durante vários anos, a jornalista Alice Vilaça costumava perguntar: "De que é que tem mais saudades do nosso país?" As respostas variavam pouco: "da família", "dos amigos", "do sol", "do mar", "do bacalhau". Percebo, é difícil resistir ao bacalhau. Mas, e a língua? Falo da portuguesa, não a do bacalhau. A resposta "da língua" não era habitual. É estranho porque, quando saio de Portugal (basta uma semana), fico cheio de saudades da língua portuguesa, que está ligada ao bacalhau, mas é (ainda) mais saborosa. A minha pátria é a língua de Caetano a roçar na língua de Camões. Hoje, é dia de a celebrar.
Sou um leitor com alma de decorador. Esta manhã, por exemplo, não me consegui decidir. Onde arrumar "Amália - Ditadura e Revolução", de Miguel Carvalho? Ao lado das biografias políticas de Mário Soares, Otelo Saraiva de Carvalho e Humberto Delgado? Ou junto às biografias artísticas de António Variações, Sérgio Godinho e Caetano Veloso? Podem enviar as vossas sugestões. Mas (lá está, o meu lado de decorador) também podem enviar clássicos de mobiliário de design do século XX. E é isto. Obrigado.