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Elis Regina faria, hoje, 80 anos. Faria, mas não fez. Morreu, muito jovem, em 1982. Tinha 36 anos. Em 74, tinha 28 e já era uma das cantoras mais populares do Brasil. Mas faltava-lhe prestígio. A geração anterior, da bossa nova, questionava-lhe o gosto. A nova geração, do tropicalismo, também. Era recíproco. Elis duvidara do valor da bossa, rejeitara o rock e questionara a introdução de instrumentos elétricos na música popular brasileira.
Daí a surpresa. Quando fez 10 anos de contrato com a PolyGram, a editora perguntou a Elis o que que é que gostaria de receber de presente. A cantora pediu um disco com Tom Jobim e foi para os Estados Unidos, gravar com o mestre. O encontro foi difícil. Os egos chocaram de frente e o disco esteve para não acontecer. Felizmente, aconteceu. E o que começou mal - e tinha tudo para acabar mal - acabou bem. Tão bem, que "Elis e Tom" é uma obra-prima.
"Já contei esta história", escreve Ruy Castro. E começa a contar: "Em 2015, uma cantora de bossa nova interrompeu seu show para se referir ao Rio dos anos 70 como 'a cidade ainda maravilhosa'" - onde se podia andar a pé, sem medo. E, depois, começou a cantar a "Carta do Tom", onde Chico Buarque diz "Eu saio correndo do pivete / Tentando alcançar o elevador". A cantora não se terá apercebido da contradição, sublinhada pelo autor do livro "O ouvidor do Brasil - 99 vezes Tom Jobim". Pelos vistos, nos anos 70, a "cidade maravilhosa" já não era assim tão maravilhosa. E quando é que foi? Talvez nos anos 60. Ou talvez não, porque foi nessa década que a capital federal se transferiu para Brasília. Nos anos 50 é que era? Também não. O autor descobriu uma série de entrevistas sobre Carmen Miranda, onde se lamentava o estado da cidade do Rio, e concluiu que, nos anos 50, a cidade já não era maravilhosa. Maravilhosa era nos anos 30. Quer dizer, nessa altura já havia quem lamentasse a construção de casas "Art Déco" que estavam a destruir a paisagem natural do Rio. E, de repente, vemo-nos a recuar até ao século XVI. E são isto as perceções de insegurança, nas cidades "maravilhosas": seja o Rio de Janeiro, de Estácio de Sá; seja a Lisboa, do Martim Moniz.
Leio a definição, logo a seguir ao índice:
"Ouvidor. S.m. Do latim auditor, -oris; auditor, ouvinte. Aquele que ouve. (...) os sons do país, venham da floresta ou da cidade. Exemplo: Antonio Carlos Jobim."
Ao virar da página, a Apresentação:
"Os 99 textos a seguir foram publicados originalmente entre 2007 e 2023, na página 2 da Folha de S. Paulo. Todos tratam de Tom Jobim, o homem e o artista, e do mundo que girou tendo-o como centro."
E, para concluir:
"Ah, sim, a definição de 'ouvidor' que você deve ter lido há pouco. Foi tirada de um dicionário - mas de um dicionário que estou pensando em escrever."
Começa bem este "O Ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim", de Ruy Castro.
80 anos. Dia de celebrar a vida de Chico Buarque. A sua e todas as que tem cantado.
Sempre gostei da forma como os músicos brasileiros partilham canções, entre si. Cruzam géneros, épocas, estilos, gerações: nos discos, no palco e na plateia. Acredito que é desta forma que se cria um repertório comum. Tinha, portanto, inveja dos brasileiros. "Inveja da boa", como agora se diz. Em Portugal, durante muitos anos, os músicos e os públicos viveram de costas voltadas: os da clássica não se cruzavam com os da música popular, os baladeiros afastavam-se dos nacional-cançonetistas; os do rock desprezavam o fado. Claro que havia exceções, mas esse era o paradigma. Um paradigma que foi mudando, ao longo dos anos. Maravilhosa, A garota não tem-nos dado momentos de partilha de um repertório comum, que tanto pode passar pela MPB, como pelo hip-hop; por Portugal ou pelo Brasil; por canções de ontem e por canções de hoje. Aqui, uma vez mais, fá-lo de forma exemplar. Ainda por cima, na companhia de um artista brasileiro. É A garota, sim.
Ninguém fugiu à classificação, para descrever Rita Lee. Parecendo muito, pareceu-me pouco. Lembrei-me de Caetano Veloso e da sua resistência inicial ao rock, ainda nos anos 50. Comparando com a riqueza da música brasileira, o rock pareceu-lhe coisa pouca. Tão demasiado simples - nos ritmos, nas melodias, nas harmonias - que lhe pareceu simplório. A rebeldia também não o seduziu. Eram, apenas, meninos ricos, de um país rico, armados em rebeldes. Mudou de opinião, com a chegada dos Beatles e dos Stones. De seguida, acolheu o rock, no tropicalismo - movimento que inventou com a sua tribo de baianos (Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé) e, ainda, Nara Leão e Os Mutantes. Os Mutantes (estive a ouvi-los, esta manhã, e senti a estranheza de sempre) eram a banda de uma jovem, muito jovem, Rita Lee. Os tropicalistas juntavam a MPB - que já abarcava vários estilos - com poesia de vanguarda, cultura pop e rock psicadélico. Voltei ao (precioso) livro de Caetano, "Verdade Tropical". Escreve Caetano: "Depois que voltei de Londres, nos anos 70, Rita Lee se tornou, com um trabalho de excelente qualidade e grande sucesso, a roqueira-mor do Brasil." Mais à frente lamenta: "Mas a própria Rita (...) trazia de volta a divisão entre MPB e rock que o tropicalismo tentara superar." A verdade é que Rita gostava mesmo de rock. No entanto, quando carregava no rock, eu pensava "que pena". Uma cantora, compositora, letrista, cheia de Brasil, que, às vezes soava "apenas" a mais uma roqueira - como tantas outras, espalhadas pelo mundo. Mas Rita era um mundo. E era, ao mesmo tempo, profundamente brasileira. Talvez por isso, em Portugal - onde se ouve pouco ou nenhum rock brasileiro - Rita tenha sido, sempre, uma exceção. Mais que rainha, mais que rock, mais que brasileiram, Rita foi única. Foi Rita.
Desculpe o auê. Não tem de quê. A Rita que eu Lee. E tanto ouvi.