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O autarca parece que tem fogo no rabo, mas não tem. Tem fogo na cabeça (é impossível não ter). E tem fogo nos pés. Estão protegidos, por um par de botas robustas. Usa as botas, para apagar as brasas. Usa a cabeça, para apagar as chamas. Chama os bombeiros, ao telefone. Chama a atenção, aos transeuntes. Uns, passam demasiado depressa. Outros, passam demasiado devagar. Outros, já não passam. A estrada foi fechada. A estrada foi reaberta. A estrada voltou a fechar. Não há helicóptero. Já há, mas nunca mais chega. Já chegou, mas não pode atuar. Não pode atuar, por causa do capacete de fumo. Ponha o capacete, senhor António, por causa do fogo. Tire a mota, senhor António, por causa do fumo. O autarca parece cansado. Nega estar cansado. Não tem tempo para o cansaço. Mas tem os olhos vidrados. E tem fogo na cabeça. Vai ser difícil, o rescaldo. Por mais água que ponha na cabeça
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Ao saber que as chamas rodeavam o aldeamento de luxo, o comentador questionou a importância do ordenamento da floresta. Sim, defendeu, porque o empreendimento estava bem ordenado, cuidado e limpo e, mesmo assim, estava a arder. Não sei dizer se estava, ou não, bem ordenado. Vamos partir do princípio que sim. Isso não invalida nada. Pelo contrário. O que aconteceu é que o fogo chegou à zona ordenada, alimentado e robustecido por vários quilómetros de floresta desordenada, habitada pela tradicional monocultura de espécies exóticas. E os problemas da floresta (como todos os outros) não se resolvem com condomínios de luxo, que não nos protegem de coisa nenhuma. Às vezes, pode ser injusto. Mas, o contrário também seria.
"Ardeu tudo, lá em cima", lamentava o jovem autarca, "Foi muito mau. Nem sei como é que não foi pior". A ideia era simples: visitar as terras que tinham ardido, no verão anterior. Tentar perceber o que estava recuperado, o que estava por recuperar, e se havia alterações na gestão da floresta. "As pessoas", dizia-me, "estão sempre a perguntar porque é que não se fecha esta ou aquela estrada. Isso não faz sentido." "Porquê?", pergunto. "Porque as estradas não são para fechar. São para circular". "Interessante", digo, "podemos gravar"? "Não, porque isto é muito polémico. No ano passado, ficámos isolados a combater o fogo, porque fecharam as estradas e os bombeiros não conseguiam passar. Portanto, a questão que deve ser feita é 'porque é que se fecham as estradas?'" "E qual é a sua resposta?", insisto. "Porque tem de ser, claro. Mas tem de ser, porque se deixa plantar eucaliptos até à beira das estradas. De resto, deixa-se plantar eucaliptos em todo o lado. E, depois, deparamo-nos com frentes de fogo de 50 km, ou mais." "Mas acha que as coisas vão melhorar?" O autarca escolheu os ombros: "Eu acho que sim. Mas, se calhar, ainda vão piorar - antes de começarem a melhorar." Premonitório. Esta conversa foi anterior a 2017. E continua-se a ter de fechar as estradas.
Ainda as chamas lavravam em Pedrógão Grande e Castanheira de Pêra. Ainda as labaredas se alastravam em Góis e Pampilhosa da Serra. Ainda o fumo toldava a visão dos que trabalhavam no meio do fogo. E já havia quem exigisse fumo branco. Começou "O Pesadelo em Ar Condicionado", pensei, roubando o título de um livro de Henry Miller.
O pesadelo decorre, invariavelmente, no Monte Olimpo, com os clientes do costume. Uns permancem na frescura do ar condicionado. Outros, deslocam-se aos locais, em viaturas velozes e climatizadas, que replicam o Olimpo em quatro rodas. Chegados ao local (um qualquer, que só tem nome durante a desgraça), permanecem o tempo mínimo exigível e, depois, regressam ao Olimpo: o palco de todas as questões e discussões; de todas as conclusões e ilações.
É, por isso, que é tão importante o trabalho dos repórteres, que permanecem nas terras devastadas pelo fogo. Para que seja ali (e não, no Monte Olímpo) que se fale dos incêndios.. Fala-se com gente real e tangível; que troca os "bês" pelos "vês"; que falha na concordância entre sujeito e predicado. "E agora?", pergunta o repórter Nuno Amaral, na Antena 1. Agora, "é andar para a frente"... diz Lucinda. Ermelinda, sujeita com todos os predicados (nascida, batizada e casada em Alvares, no concelho de Góis), está em concordância com a primeira. Esta gente concorda no essencial, para não se perder nas discordâncias verbais do Monte Olimpo.
Fogos. Em tempo de guerra, não se limpam armas. Agora, com a guerra em rescaldo, talvez já seja. Mas, limpar armas é diferente de afiar facas.
Final de uma tarde de verão. Pedrógão Grande estava pronta para ouvir música. Senhores e senhoras, com alguma idade, aguardavam. Era sábado. Os trajes eram domingueiros. Havia curiosidade e entusiasmo no ar. A música começou… e começou mal. No final do primeiro andamento, o entusiasmo converteu-se em palmas. O maestro, que já tinha feito gestos e olhares de censura, parou a Sinfonia de Câmara, de Shostacovitch. A obra, explicou, foi inspirada no bombardeamento de Dresden e dedicada às vítimas da guerra e do fascismo. Dresden foi uma das cidades mais fustigadas pela guerra. A música é triste e soturna. Não podia ser diferente. Fala de morte, desespero e destruição. Não combina com palmas, no meio dos andamentos.
Explicada a obra, o maestro pediu silêncio e prometeu divertimentos de Mozart, na segunda parte. O público acatou com dignidade e silêncio e a orquestra tocou como nunca. Na minha cabeça, Pedrógão Grande passou a ser a terra dos que sabia ouvir e homenagear, com dignidade, as vítima da destruição. Saibamos, nós, fazer o mesmo.