Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
E, portanto, como acordei meio tristinho, resolvi ouvir um bocadinho de Amália, para me animar. Sim, Amália tem canções alegres. Mas, muita gente não sabe. O que é triste.
Com que Voz (Luís de Camões, Alain Oulman)
Em 1984, o espanhol Carlos Cano comprou um disco de Amália, em Lisboa. Apaixonou-se pela fotografia de Amália - olhos cerrados, pálpebras pintadas de azul, boca vermelha, cabelo negro. Depois, pela voz de Amália - de cor, também, "negra, quase mourisca, com uma capacidade de emocionar fora do comum". Inspirado, escreveu "Maria la Portuguesa", a pensar em Amália. De seguida, enviou-lhe uma primeira gravação da canção.
Amália telefonou-lhe de volta, para lhe dizer que, há muito tempo, não ouvia uma canção tão bonita. Então, Carlos Cano encheu-se de coragem e pediu-lhe para gravar a sua voz. Apesar de já não gravar, há cerca de dez anos, Amália acedeu. Gravaram em Lisboa. No entanto, a voz de Amália acabou por não entrar na canção, por motivos técnicos.
Em 2000, Carlos Cano voltou a gravar “Maria la Portuguesa”. Desta vez, Amália, apesar de ter morrido no ano anterior, apareceu na gravação. Já Carlos Cano desapareceu, nesse mesmo ano, levado por um aneurisma. O disco também estava desaparecido, desde a minha última mudança de casa. Apareceu agora, em boa hora.
A canção está aqui:
Acordo, abro a janela e verifico que tenho uma carrinha funerária à porta de casa. Felizmente, uma das minhas qualidades é que sou bom para ir buscar a morte. Mantenho a calma. Preparo e tomo o pequeno almoço, despacho a criançada, vejo o correio eletrónico, arrumo a cozinha, tomo um duche rápido, visto-me e, finalmente, saio de casa.
Olho para dentro da carrinha: um colchão, dois sacos de cama, uma mochila, um saco de compras. Portanto, a carrinha funerária acampou, à minha porta. Suspiro, finalmente. Confesso: a dada altura, como no fado de Amália, "Cuidei que tinha morrido".
Já não temos fome mãe
Mas já não temos também
O desejo de a não ter
Já não sabemos sonhar
Já andamos a enganar
O desejo de morrer
Ai, Amália, você mata-me! E eu ainda não estou preparado para ... bem, você sabe!
A canção pode ser ouvida, aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=TUq1MYIDttY
"Eu vou botar um pouquinho de sotaque, um pouquinho só", disse Vinicius de Moraes, antes de oferecer, a Amália, o fado "Saudade do Brasil em Portugal". Foi registado, em 1970, num disco conjunto. Passaram mais de 50 anos, e Caetano (um eterno apaixonado por Amália e pelo fado) repete a gracinha. Bota um sotaque para cantar "Você-Você", com a maravilhosa Carminho - que já cantou o tema de Vinicius e está habituada a cantar com os deuses. A canção está aqui, com um vídeo a registar o momento, mas o disco "Meu coco" merece ser ouvido, de fio a pavio. Começa por nos cantar que "O português é um negro dentre as eurolínguas", para (espero não estar a dar com a língua nos dentes) nos levar aos mais variados "brasis", até desembarcar em "Você-você". Não é, no entanto, o fim da viagem. Depois de um "quase fado", com o bandolim a fazer de guitarra portuguesa, chega a certeza de que "Sem samba não dá". A chegar aos 80 anos, o mais jovem de todos nós, dá-nos um "best off" de inéditos: intemporal e contemporâneo, ousado e familiar. Caetano dá-nos uma obra prima. A obra prima do mano. O mano Caetano.
Há cerca de 5 anos, a fadista Gisela João gravou uma canção maravilhosa chamada "O Sr. Extraterrestre". Chamaram-me a atenção para o vídeo, que vi na companhia dos meus filhos. A pequenada adorou. Eu também. Depois, reparei num comentário, no Youtube: "A Amália deve estar às voltas no túmulo". E seguiam-se muitos comentários de apoio ao comentário "Credo", "Horrível", "Isto não é fado, nem é nada", "Tudo isto é triste, nada disto é fado". Não, não é fado. Não, não é triste. E Amália não anda às voltas no túmulo, porque a própria gravou a canção, do genial Carlos Paião. E, se Gisela João recorreu à instrumentação tradicional de fado, Amália não evita bateria, baixo, guitarra elétrica, teclados e efeitos especiais/espaciais. O disco, em si, também é de outro mundo: por fora uma capa em banda desenhada, por dentro um vinil colorido amarelo. Um OVNI, portanto. Amália apresentou a canção, no "Passeio dos Alegre" do Júlio Isidro, enquanto estendia a roupa e cantava "Tenho esta roupa a secar e ainda se vai sujar / Se essa coisa aí ficar a deitar fumo pra fora". Mas, apesar do receio inicial, acaba por simpatizar com o dito senhor, ao ponto de se preocupar: "E vista também aquela camisinha de flanela / Pra quando abrir a janela não se constipar com a aragem". E, como boa portuguesa, "Eu dei-lhe um copo de vinho e lá foi no seu caminho / Que era um pouco em zigue-zague".
Amália gravou o "O Sr. Extraterrestre" há 40 anos. Esta tarde, depois das 4, na Antena 1, Nuno Galopim vai juntar uma série de amigos à volta de Amália, à volta da rádio. Sem voltas no túmulo.
Com o alívio das restrições da pandemia, o jornalista Miguel Carvalho regressou à estrada, para apresentar o livro "Amália - Ditadura e Revolução". Escreve o autor, nas redes sociais: "a minha Amália vai estar aqui", "a minha Amália vai estar ali". Pois bem, senhor Miguel Carvalho, deixe-me falar-lhe da minha experiência: a minha Amélia saiu da minha casa, com a sua Amália. Desapareceram, as duas, de braço dado. Estive mais de 15 dias sem as ver. Quando, finalmente, as reencontrei, a minha Amélia entregou-me o seu livro. "Já li", disse ela toda satisfeita, "o livro é muito bom". Isto poder-lhe-á agradar, sr. Miguel. A mim é que não. Anda, para aqui, um tipo consumido...
Estava eu a ouvir uma sinfonia de Dvořák, muito jeitosa, na minha telefonia (desculpem o termo, sou antigo) online (a fugir para o moderno), quando vejo as horas e ligo o transístor, noutro posto emissor, para ouvir o noticiário. Depois do noticiário, deixo ficar o transístor ligado mais uns minutos porque, entretanto, o Camané começou a cantar uma modinha dos Xutos e Pontapés muito agradável. Entretanto, o meu computador foi invadido por um "live" no Facebook, de uma senhora pianista que tocava uma variação com temas dos Beatles, que, não sei porquê, me lembrou Keith Jarrett. Enfim, uma mixórdia: tudo a tocar ao mesmo tempo. Não me sentia tão confuso desde o Jackpot 79. Nesse disco, o jovem Marco Paulo cantava a "Mulher sentimental", que eu desconfiava que era a Suzi Quatro - que entrava, logo a seguir. Mais à frente, a Lara Li dizia-se pronta para dançar o fandango, mas, na realidade, a cançoneta tinha um ritmo "disco sound". No fundo, um prelúdio, no mesmo ritmo, para uma rapsódia de canções de Amália no disco 2 do Jackpot. A sinfonia de Dvořák é conhecida como a "Sinfonia do Novo Mundo". À cacofonia, cá de casa, poderemos chamar "Fim do Mundo".