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O jornalista Adriano Miranda alertou, hoje, no Facebook: "Morreu o Sr. Francisco". O sr. Francisco é maior do que ele próprio. Primeiro, o seu retrato (uma obra de arte, do Adriano) correu o país. Depois, correu o mundo. O sr. Francisco tornou-se o símbolo dos incêndios de 2017: da tragédia, do sofrimento, do desespero; mas também da luta, da esperança, da vida. A jornalista Patrícia Carvalho detetou-lhe a "réstia de um sorriso" e contou a sua história no livro "Ainda aqui estou". O sr. Francisco não esteve sempre ali: na aldeia de Covelo, freguesia de Ventosa, concelho de Vouzela, distrito de Viseu. (As terras mais pequenas - penso agora - ocupam tão pouco espaço no mapa, que, para serem vistas, precisam de nomes mais extensos do que a aristocracia europeia). O sr. Francisco tentou ganhar vida e mundo, mas, infelizmente, não foi correspondido. Voltou para a terra; construiu uma casa, onde viveu com a mulher, uma tia e uma ausência de filhos; semeou "umas batatas" e plantou "umas cebolas". Em 2017, quando as chamas lhe arrancaram do seu sono de viúvo, nessa noite quente de outubro, percebeu que nada havia a fazer. Fechou-se em casa, bebeu aguardente "para andar assim meio atordoado", temeu o pior, esperou pelo menos mau. Sobreviveu, para contar.
A maioria dos jornalistas vive rodeada de "cenários" e "teatros de operações". Alguns, porém, conseguem "mergulhar" nos cenários, habitados de personagens e figurantes, e resgatar gente. O sr. Francisco era um símbolo, sim, mas também era gente. Aliás, era, sobretudo, gente. Gente com vida própria: "uma vida do caraças", disse ele, "uma vida do caraças".
"Ainda bem que chegaste", costumava dizer-me um velho amigo de infância, quando eu chegava de férias. "Podes-me ler o postal que me enviaste? Gostei muito, mas não percebi nada do que está escrito. A tua letra é terrível." Não sei se vou perceber o livro “Ilhas da Ria”, da Maria José Santana. Aparentemente, a letra não é má. E já vi o postal. É lindo, tem uma foto do Adriano Miranda.
Ontem, o Adriano Miranda passou cá em casa. Trouxe dois exemplares de "Emergência 366" - o novo livro, que fez emergir com o Paulo Pimenta. Um excelente documento do ano mais estranho de que temos memória. Trocámos palavras breves. Eu estava entre dois noticiários; ele estava numa maratona de entregas. Devia-lhe ter pedido para tirar uma foto. O Adriano fica sempre bem na fotografia.
A Rita abria os braços e corria para o televisor, a sorrir: "SA-RA-MA-GO!" A menina não tinha, ainda, 2 anos e não entendíamos a razão de tanto entusiasmo. Com o Nobel, Saramago tinha passado a aparecer muito no ecrã. Mais tarde, percebemos que a pequena Rita gritava "SA-RA-MA-GO!" sempre que via um senhor velhinho na televisão. Concluímos que, habitualmente, não há muitas pessoas de idade na televisão. Se não tivesse crescido, talvez, hoje, a Ritinha gritasse "LOU-REN-ÇO!" - outro velhinho excecional, recentemente falecido. Ontem, muita gente ficou muito entusiasmada com a capa do jornal Público. O próprio autor das imagens da capa, Adriano Miranda, confessava, no dia anterior, que estava tão excitado, que não sabia se iria dormir. Na capa do jornal, não estava um escândalo político, nem uma vitória desportiva, nem sequer um velhinho excecional: estavam velhos. E uma pergunta, inquietante, no interior: "Porque escolhemos não ver os velhos?" E um texto, assombroso, da escritora Dulce Maria Cardoso, que, a dada altura, refere: "Todas as crianças são parecidas entre si, os velhos são velhos cada um à sua maneira". Tínhamos, então, velhos no jornal - o grupo mais afetado pela pandemia. Muitos velhos. Mas, cada um com o seu nome, a sua idade, a sua profissão. Cada um "à sua maneira". Só isto: que é tanto.