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Antes, durante e depois da revolução. A saga de uma família, ou de um país? Ou de vários países, dentro de um mesmo país? Esse país, ainda existe?
"Revolução", de Hugo Gonçalves, conta a história de três filhos, muito diferentes entre si. A mais velha, militante do PCP, foi presa pela PIDE. Abandona o PCP, para se radicalizar, à esquerda. A irmã tem um perfil conservador, que parece conviver melhor com o salazarismo, do que com os tempos conturbados do PREC. O mais novo vive num mundo interior e hedonista, com contactos esporádicos com a irrealidade daqueles anos. Os três são filhos de uma mulher, aparentemente conservadora, outrora mãe solteira, que ascende socialmente pelo trabalho e pelo casamento com um homem de hábitos aristocratas e sobrenome estrangeiro. "Storm" é um nome que antecipa a tempestade perfeita, num país prestes a rebentar - pelas costuras e pelas bombas da extrema-esquerda, das Brigadas Revolucionárias, e da extrema-direita do ELP - Exército de Libertação de Portugal.
Confesso que, ao fim das primeiras páginas, dei por mim a desejar mais literatura e menos Hollywood. A linguagem, o ritmo, a estrutura narrativa - com vários coisas a acontecer ao mesmo tempo e "flashbacks" e "fast fowards" - começavam a irritar-me. Afinal, queria ler um livro. Não queria ver um filme, nem uma série. Acabei a ler um país: trágico, cómico, violento, complexo, contraditório. Um país que continuo a descobrir. Que permanece por descobrir.
Queria, desesperadamente, chegar ao fim deste livro. Porque me estava a incomodar. Nem sabia porquê. Depois, percebi. Era por causa do cheiro. O cheiro a humidade, a pó, a caruncho, a mofo, a naftalina. O livro fala de Portugal, depois de Abril, mas o cheiro é do regime anterior. Como assim? Então, e "As portas que Abril abriu"? e "O cheirinho a alecrim"? e "O dia inicial inteiro e limpo"? Porque me cheira assim?
No livro, uma jornalista portuguesa, a trabalhar nos Estados Unidos, regressa a Portugal para recontar uma das mais belas histórias do século XX: a Revolução dos Cravos. Fá-lo porque o mundo está um lugar muito feio e é preciso contar histórias bonitas ao mundo. Este ponto de partida ajuda a aumentar o desconforto. É que essa ideia, vinda de fora, não cola com a realidade, cá dentro.
A protagonista vai reencontrar o seu pai, com quem tem uma relação difícil, e vai tentar reencontrar alguns dos amigos do seu pai: são alguns dos principais heróis de Abril. Todos eles tiveram destinos diferentes. Todos nos transmitem uma tristeza sem fim. Todos nos remetem para o mesmo cheiro.
Chego, finalmente, ao fim do livro. Mas, em vez de me livrar dele, volto para trás e começo tudo de novo. No meio do cheiro (e do fumo, não tinha referido o fumo), há sinais de esperança que não tinha sentido na primeira leitura. É um livro memorável, como as personagens que lhe dão título. Tem a mestria de Lídia Jorge. E não nos facilita a vida...