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Um urso para Canijo

por Miguel Bastos, em 28.02.23

 canijo.jpg

Este fim de semana, o cinema de João Canijo foi premiado, em Berlim. Hoje, tropecei com este texto, no meu computador.
 
2002 era futuro. 1999 e 2001 também foram. É estranho falar do futuro, com tempos verbais do passado. Mas, de facto, no passado, falava-se mais do futuro. Nos anos 70 e 80 vivemos o futuro com o “Espaço: 1999” ou o “2001: Odisseia no Espaço”. Eu escolhi o 2002, para a minha odisseia: ver o meu primeiro filme no cinema. O Estúdio 2002 tinha aberto, há pouco tempo. Na altura, os cinemas-estúdio eram o futuro. Eram mais pequenos, mais confortáveis, mais modernos. O Estúdio 2002 tinha espelhos no tecto, paredes pretas, carpetes vermelhas, cadeiras brancas. Era o local ideia para ver um filme do James Bond.
 
A cortina (vermelha) abriu-se e os meus olhos deslumbraram-se com o genérico do senhor Bond: tons escuros, ambiente de mistério e uma luz (vermelha) a sair de uma pistola, com o nome dos artistas. O cinema e o filme pareciam maravilhosamente unidos aos meus olhos. A simbiose era perfeita: luxo, charme, elegância e sedução - na tela e fora dela. De tal modo, que tive esperança de encontrar James Bond, ao intervalo, a beber um Martini, ao balcão - “shaken, not stirred”. O 2002 era um local suficientemente requintado para receber o agente secreto mais elegante do mundo. Infelizmente, o senhor Bond não estava no bar e, também, não o vi à saída. Olhei o cartaz de “Octopussy - 007 Operação Tentáculo” e pensei que tinha escolhido o melhor local para ver o filme.
 
Numa das últimas vezes que voltei ao Estúdio 2002, o filme era bem diferente: “Sapatos Pretos”, de João Canijo. O filme conta a história de uma mulher, presa a um homem machista e violento. Canijo já estava especializado em retratos de Portugal. Um Portugal de “faca e alguidar”, em oposição ao “país de brandos costumes”. Um Portugal feio e sórdido, que contraria o “jardim à beira mar plantado”. No filme, a protagonista tenta mudar de imagem: pinta o cabelo, compra roupas novas, aumenta o peito, arranja um amante. Quer mudar de vida e, para isso, pensa matar o marido. Assim contado, podia ser uma história de telenovela ou uma comédia, mas o filme é tudo menos isso. A dada altura, há uma cena particularmente violenta, que chocou muitas pessoas da plateia - ao ponto de ter sido necessário chamar uma ambulância para socorrer uma senhora. Antes da projecção, tinha falado sobre essa cena numa entrevista com o realizador, que, agora, olhava para mim, atónito, surpreendido com as sirenes, os bombeiros e a aflição da senhora.
 
Não sei se foi por influência do filme, mas olhei à volta e o meu 2002 também me parecia velho e gasto. No filme não havia nada de glamoroso na transformação física da personagem principal: aquele louro era de actriz de novela mexicana, as roupas eram mau gosto, o amante era um galã de pacotilha. O Estúdio 2002 estava parecido: as carpetes estavam gastas, as cadeiras encardidas, os espelhos fora de moda. Voltei a sentir uma estranha união entre o cinema e um filme, mas desta vez pelas piores razões. 2002 já era passado.
 

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