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Portanto, as pessoas estão indignadas com o encerramento da Feira do Livro de Lisboa, por causa dos festejos do Benfica. Eu confesso que também fui apanhado de surpresa. Afinal, este é o país que tem três jornais diários sobre livros e literatura. Mas, a verdade é que já não tenho paciência para os programas de debate sobre livros. É sempre a mesma receita: um adepto do Lobo Antunes, outro do Saramago e outro do Rodrigues dos Santos, aos gritos. Aquilo não tem utilidade nenhuma: discute-se a extensão da frase ou do parágrafo, analisa-se a densidade dos personagens, contam-se as figuras de estilo... credo! E as antevisões da narrativa?! E o balanço das edições, na sala de imprensa?! Haja paciência! Para mim, um intervalo para futebol é uma lufada de ar fresco.
O Portugalex faz 17 anos. A minha primeira reação foi "Uau, incrível"! A segunda foi "Credo, para o ano faz 18 anos! Será que vai ganhar juízo?" Espero que não. Aqui estão eles a celebrar, com humor e inteligência. Mas, também, com uma inquietação: "Fizemos coisas, há 17 anos, que, hoje, não seriam possíveis", diz a Patrícia Castanheira. O riso continua a ser considerado perigoso, não é William de Baskerville?
Para ouvir aqui:
https://antena1.rtp.pt/video/equipa-do-portugalex-festeja-aniversario-na-antena-1/
Ouço-me, nos arredores da cidade, com vista para um campo plantado com galinhas, sanitas e pneus. O encenador Ricardo Pais regressa ao Teatro Nacional de São João, casa que dirigiu durante 10 anos. O assunto é notícia. O trabalho de reportagem teve dois atos, com um longo interlúdio com o Presidente da República, no dia em que vetou a lei da eutanásia. Só retomei o trabalho sobre a peça de teatro, já cansado, ao final do dia. Daí a vontade de verificar, no dia seguinte. Será que ficou bem? Aparentemente, sim. No regresso a casa, puxo a emissão da Antena 2 atrás e ouço a voz de Ricardo Pais a abrir e, depois, a trespassar a manhã. Descanso, finalmente.
[Fotografia: Teatro Nacional de São João]
Para ouvir aqui (Reportagem aos 7'40''):
Estou a ouvir a 5.ª Sinfonia de Mahler e a pensar nas mãos e nos braços de Tár; no rosto e nos olhos de Tár. E na voz, no discurso, na inteligência e no brilhantismo. E, ainda, na disciplina, no rigor e na assertividade implacável da personagem interpretada por Cate Blanchett. Depois de ter saído do cinema, senti-me preenchido e atordoado. Poucos dias passados, tenho a certeza de que o filme "Tár" vai-me acompanhar, nos próximos anos. Do mesmo modo que "Amadeus", de Miloš Forman: quando ouço o "Confutatis", do Requiem de Mozart, vejo Mozart a desenhar melodias no ar e a ditar as notas a Salieri, enquanto morre. Do mesmo modo que "Brassed off" / "Os Virtuosos", de Mark Herman: quando ouço o "Adagio", do Concerto de Aranjuez, de Rodrigo, vejo a nobreza, a paixão e o desespero da banda filarmónica, na sua luta pelo direito ao trabalho e a uma vida digna.
"Pensem na 'Morte em Veneza'", pede Tár, aos músicos que ensaiam o "Adagietto", da 5.ª Sinfonia de Mahler. A música faz parte do filme de Visconti. De resto, "Tár" está cheio de referências: a maestros, a músicos, a compositores, a outras artes - o que pode fazer com que os espetadores se sintam esmagados e excluídos. Mas, essa sensação faz parte da experiência que muitos sentem: ao entrarem numa grande sala de concertos, ao contactarem com os rituais da orquestra, ao enfrentarem uma sinfonia com uma duração superior a uma hora. Esta é uma música poderosa, mas é, também, uma música muito ligada aos círculos do poder e Tár não hesita em exercer o poder, de forma quase absoluta. Tár não sabe, no entanto, que o poder que exerce, pode estar a ser questionado, minado e, até, sabotado. Ou sabe?
São poucos os filmes onde sinto que a música é bem tratada. Não é o caso deste. Sinto, até, que, em nome desse rigor, a narrativa do filme possa, aqui e ali, ter sido sacrificada. Nesse sentido, "Tár" pode, até, não chegar a ser considerado uma obra-prima (o tempo o dirá), mas é, seguramente, um filme monumental. Mais de uma hora depois, a Sinfonia n.º 5, de Mahler, recomeça na minha aparelhagem: ouve-se o som do trompete e eu regresso mentalmente, à imagem de Tár, a maestrina implacável, a entrar em palco...