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No fundo, os adultos migram para a infância, em busca de uma vida melhor.
"Vê lá se a Páscoa te sai à segunda-feira", costumava dizer o meu pai. A frase podia ser dita em tom de aviso, de ameaça, ou, apenas, em tom de brincadeira. "Nesta família, a Páscoa é sempre à segunda feira", costumávamos responder. E era verdade. Na Páscoa, mudávamo-nos para a aldeia, visitávamos todas as casas de todos os tios, ajudávamos a preparar tudo para a visita pascal, estreávamos roupas novas. Havia salas que se abriam uma vez por ano: para esse dia, para esse momento. Na mesa, as melhores toalhas recebiam gasosas e laranjadas, vinho do Porto e "Martini", pratinhos de queijos e enchidos, pão e folares, amêndoas e biscoitos. Nunca havia tempo para provar tudo, porque, entretanto, mudávamos para outra casa, que tinha coisas parecidas, e depois para outra e depois para outra. Esse dia, era segunda. Por mais avisos e ameaçadas que o meu pai nos fizesse, a Páscoa era sempre à segunda-feira.
Era noite e estávamos em frente à televisão. Esperávamos a Dona Xepa. A Dona Xepa vendia no mercado, trabalhava noite e dia para, sozinha, criar e educar os filhos. Parecia a nossa vida. Preparávamo-nos, portanto, para nos vermos ao espelho, quando o Raúl Durão, com voz de BBC e cara de caso, interrompeu a emissão. A minha mãe barafustou. "Não há direito, interromperem assim a novela", mas rapidamente, mudou de tom. Engolimos em seco. Sá Carneiro tinha morrido e a notícia foi mais difícil de engolir do que as chicotadas na escrava Isaura.
Em 1985, estávamos acampados a 15 quilómetros de casa. Mas era como se estivéssemos noutro continente. Vivíamos numa tenda grande, sem água nem luz. Andávamos sem relógio. Mergulhávamos no mar, em jejum. Líamos ao sol ou à lareira. Tomávamos banho ao ar livre. Ensaiávamos palavras em inglês, com estrangeiros altos e louros. A única coisa de que sentíamos falta era do Jorge Palma. "O lado errado da noite" tinha entrado lá em casa, pouco dias antes de partimos para a nossa aventura. O disco tinha-nos deixado surpreendidos, boquiabertos, maravilhados. Tinha qualquer coisa de Sérgio Godinho e de Neil Young. Era estranho e familiar, ao mesmo tempo.
Hoje, fui surpreendido pelos 70 anos "redondos" de Jorge Palma e procurei "O lado errado da noite". Encontrei-o entre o Julio Iglesias, da minha mãe, e os Joy Division, da minha adolescência. O Jorge é um velho amigo da família. Ele não sabe, claro, mas é. Palmas.
- Sabes, pai, hoje uns amigos da escola estavam a falar da minha mochila.
- A sério, filho?
- Sim, disseram que a minha mochila era muito infantil.
- Oh filho, vocês têm 7 anos!
- Pois, pai, mas eles disserem "Ai, essa mochila é para bebé" e mais não sei quê.
- E ficaste triste?
- Não, pai. Disse-lhe que eu gostava dela...
- Fizeste bem filho.
- ... e que me estava a lixar para o que eles acham.
- Só não devias ter dito "lixar".
- Eu sei, pai. Mas era para eles perceberem.
"Como se chama o jornal oficial do Estado onde são publicadas as normas legislativas do pais?" Foi pergunta do sabichão, esta manhã, na Antena 1.
"Não sei", responde o mais novo.
"É o diário..." , diz a ajuda de casa.
"...de um Banana", reponde o mais novo, a sorrir.
E é isto, malta do Zig-Zag...
No meio de um ambiente cinzento, havia o tio Jorge. Otelo e a irmã gostavam de imitar o tio. Chamavam-lhe a brincadeira dos “pás”. “Eh pá, vamos comprar cigarros”, dizia um. “Eh pá, vamos ao café”, dizia outro. Quando li isto, na biografia de Otelo Saraiva de Carvalho, de Paulo Moura, sorri.
Eu também brinquei aos “pás”, com os meus irmãos. Nós dizíamos “brincar aos jovens”. Falávamos ao telefone, íamos à praia, passeávamos de carro, bebíamos “cocktails”, íamos ao cinema e à discoteca. Os exemplos, vinham das novelas. Nós não tínhamos um tio Jorge, cosmopolita e “bon vivant”, que trabalhava numa companhia aérea. Mas dizíamos “pá”.
Em 1974, Otelo brincou, de novo, “aos pás”. Foi no 25 de Abril. O estilo manteve-se: “Mónaco e México já caíram nas nossas mãos.”; “Eh pá, palavra de honra? Isso é porreiro, pá”; “Desculpe, lá, qual é o seu nome?”; “Otelo Saraiva de Carvalho”; “Eh, pá!”.
Francisco Buarque de Holanda imortalizou a brincadeira numa canção: “Sei que estás em festa, pá”; “Eu queria estar na festa, pá”; “Lá faz primavera, pá”. O Chico, pá, a falar como o Otelo!