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Como a maioria dos jovens da sua geração, José Mário Branco não gostava de fado. Era uma questão de idade mas, também, de orientação ideológica. O fado era visto como coisa antiga, bolorenta, salazarenta. Mais tarde, (ó ironia!) José Mário tornou-se um dos nomes mais importantes do fado: primeiro, com Carlos do Carmo; depois, com Camané. Escreveu letras, melodias e arranjos, produziu discos. Camané lembra que produziu todos os seus discos e só deixou de produzir porque a morte (velhaca, como sempre) o levou. Esta homenagem é (obviamente) mais do que merecida. Mas é (sobretudo) muito bonita. Obrigado, a ambos.
"O senhor doutor tem tanto para fazer e anda aqui a perder tempo connosco". A tia estava incomodada. Tinha vindo trazer um leitão ao senhor doutor - para agradecer "por tudo" - e, agora, o senhor doutor agradecia o agradecimento, perdendo tempo connosco. Passeava pelas ruas, apontava estátuas, descrevia igrejas e museus, entrava em lojas de quadros. "Oh, senhor doutor!" De nada serviam as nossas explicações: que o "senhor doutor" era de história e gostava de museus, que era das artes e gostava de lojas de quadros. Em vão. A tia podia não perceber muito de história - nem de quadros, nem de estátuas, bem de livros - mas percebia de trabalho (oh, se percebia!) e aquilo não era trabalho. E, certamente, que o senhor doutor ("Não lhe chamem 'Manel', meninos, tenham respeito!") precisa de trabalhar, que ninguém chega a doutor sem trabalhar muito, sem queimar as pestanas. De modo que seguimos o passo estugado, da tia, e deixámos o doutor, apeado, a encolher os ombros e a piscar os olhos. Acho que o senhor doutor não percebeu a tia. Voltei paras trás, para lhe explicar, mas continuou sem perceber. Acho que vou ter que lhe fazer um desenho, que o doutor é das artes.
No livro “A Cegueira do Rio”, um conjunto de personagens tenta evitar o início da guerra, a todo o custo. Mia Couto coloca-nos em 1914, mas sabemos que podia ser hoje: o mundo ou está em guerra, ou está à beira dela. Acabo de ler o livro, começa mais uma guerra e volto ao princípio. Escreve o autor: “Para os europeus, o Rovuma era uma fronteira separando a ‘África Oriental Portuguesa', da ‘África Oriental Alemã’. Para os africanos, o rio era uma mulher que engravidava com as grandes chuvas”.
- Bons olhos o vejam!
- Pois, não tenho aparecido.
- Até já tinha perguntado, aqui no café, se estava doente.
- Tive uma coisa da idade.
- Então?...
- Um problemazito com a próstata, mas já fui operado.
- Ahhh, então está explicado. E, agora, está tudo ok?
- Estou impecável. Até estou mais novo.
- Ai, sim?
- É, fiz uma operação plástica.
- A sério? Onde?
- À cabeça.
- À cabeça?
- Sim, uma circuncisão. Impecável.
Não há nada como almoçar fora.
Uma cerimónia de família afastou-me, ontem, da cerimónia do 10 de Junho. Ouvi, com atraso, o discurso do "aqui ninguém tem sangue puro", de Lídia Jorge. Belíssimo discurso. Infelizmente, a seguir, tive de ouvir o "vai para a tua terra", na cerimónia aos antigos combatentes - com direito a saudação nazi - e a notícia da agressão ao ator Adérito Lopes, à porta do teatro A Barraca, por um grupo de "portuguezes" com z. "Ninguém tem sangue puro". Ninguém. Muito menos quem tem sangue nas mãos.
Já fui muito feliz, em Munique. E mais do que uma vez. Mas nunca vezes demais.
"Miguel, como é que é?", perguntava a amiga da minha mãe. E eu saía para a rua, braços do ar, dedos em "V", de vitória: "PPD! PPD! PPD!". Toda a gente sorria. Naquele tempo, o PPD era muito popular na mercearia da minha mãe. As senhoras elogiavam o Sá Carneiro e comparavam com outros políticos. Era muito melhor que o "bochechas" e infinitamente melhor do que o "cavalo branco". Uns "estes" e uns "aqueles". "Não viu n' O Diabo o que eles fizeram, desta vez?" "A Vera Lagoa é que os topa a todos." "Miguel, como é que é?" Na minha cabeça, o "bochechas" e o "cavalo branco" misturavam-se com o Major Alvega, o Zé Gato, a Gabriela ou a Lina. A Lina era filha da dona Alzira. Mas, apesar de morar lá na rua, parecia saída de um filme americano. Era alta, de sapatos altos, "como os do Sá Carneiro". "Não me diga que nunca reparou nos tacões?!" E era loira. "A do Sá Carneiro, também". E tinha o cabelo escorrido, a cair pelas costas abaixo. A Lina. Usava cigarro, na mão direita, e namorado, no braço esquerdo: o Zé Nando. O Zé Nando tinha um ar amalucado e mais cabelo do que ela: na cabeça, sim, mas, também, na cara e no peito. Casaram-se, no civil: os dois, de ganga e cigarro na mão. Nunca tal se tinha visto. Foi tema de falatório. A Gabriela, também era: meia despida e completamente descalça. A Lina, ao menos, usa sapatos. A Gabriela, não. Sempre a recusar os sapatos do Seu Nacib. Mas, aí, é a fingir, é na televisão, é no Brasil. "Aqui é diferente". A Lina, nem um vestido, como deve ser. Nem um véu, nem uma grinalda. Nem um homem, como deve ser. O pai morreu, "ui, há muitos anos!". O Zé Nando é um rapazolas, de jardineiras. Só ganga, para ele e para ela. Credo, valha-nos o Sá Carneiro. "PPD! PPD! PPD!" O Sá Carneiro, que nem precisa de escrever os discursos. Diz tudo de cor. Diz tudo o que tem que ser dito. Sem papas na língua. O Sá Carneiro.
Antes de conhecer a social-democracia. Antes, muito antes, eu conheci a social-mercearia.