por Miguel Bastos, em 20.07.23
Quando um escritor morre, tendemos a voltar à sua obra. A pensar nela e no seu autor. Faz parte de um certo processo de luto. No caso de Milan Kundera, quase toda a gente se lembrou de "A insustentável leveza do ser". Eu também. Acrescentei "A Valsa do Adeus", "A Imortalidade" e "O Livro do Riso e do Esquecimento". Detive-me na palavra "esquecimento". Constatei que, para além dos títulos, não me lembrava dos livros de Kundera. Esquecimento. Abri, por acaso, "A Imortalidade".
"Estou na cama, mergulhado na doçura de um semi-sono. Às seis horas, depois de um primeiro e leve despertar, estendo a mão para o pequeno transístor poisado perto da minha almofada e carrego no botão. Ouço as notícias da manhã, quase a distinguir as palavras, e adormeço de novo, enquanto as frases que ouço se vão transformando em sonhos. É a fase mais bela do sono, o momento mais delicioso do dia: graças à rádio, saboreio os meus perpétuos despertares e adormecimentos, essa oscilação entre a vigília e o sono, esse movimento que por si só me livra do desgosto de ter nascido."
Com que então, rádio?! Como é que não me lembrava? Não sei. Avanço n' "A Imortalidade" e percebo que a rádio veio para ficar no romance. Eu também. Experimento "despertares e adormecimentos" em diferentes camas, sabendo que, daqui, não saio tão cedo.