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"Perigo gelo!", diz-me o meu carro logo pela manhã. O meu carro trata bem de mim. Estou a brincar, claro. Não é ele. Foi alguém - outro ser humano - que o programou para mim. Por isso, estranho que esse alguém não se tenha lembrado de colocar um dispositivo semelhante em garrafas e copos de "whiskey". Faria uma bela fortuna!
A pandemia está, permanentemente, a trocar-nos as voltas. Desde que regressei, fisicamente, à redação da rádio, tenho passado por vários programas e horários. Desde aquele em que saio "fora da caixa", às sete da manhã; até àquele em que saio "da minha zona de conforto" às 3 e meia da manhã, para termos notícias "no ar" às sete. Tenho assumido tantos desafios, que até já pensei em apresentar-me como "empreendedor".
"(...) os homens não falam entre si. Nas famílias, as palavras estão entregues às mulheres. Os homens gerem silêncios, aqui e ali entrecortados." Apanho a frase, na revista do Expresso. É da semana passada. Já devia, portanto, ter ido para o lixo. Mas não foi. Demora-se sempre mais tempo do que é suposto: na secretária, na prateleira, ao lado da cama. A revista ficou, ali, aberta: pronta para ser lida. Às vezes, não chega a ser. Os jornais dão-nos mais, muito mais, do que conseguimos ler. São um caleidoscópio do mundo, que esperamos ordenar. Mas acabam, eles próprios, espalhados e desordenados: pela casa; pelo mundo.
Os bares e as discotecas vão reabrir. As "reuniões de trabalho" (é uma daquelas designações estrangeiras da moda) voltam a ser legais.
Jarvis Cocker, a voz dos Pulp, tem ouvido de tísico e "olho de Balzac". No seu disco mais recente, "Chansons d'Ennui", o personagem transgressor da britpop assume o papel de uma estrela pop francesa. Em "Paroles, paroles", Cocker faz de Alain Delon, a contracenar com Dalida (papel desempenhado, aqui, por Lætitia Sadier). É a canção em que um Delon, sedutor, diz coisas como "Tu és o ontem e o amanhã" ou "Tu és como o vento que faz cantar os violinos e espalha o perfume das rosas" e Dalida reponde "Caramelos, bombons e chocolates" ; "Podes dá-los, a outras que amem o vento e as rosas". Ele insiste: "Não percebo". Ela explica, no refrão: "Palavras, palavras, palavras" ; "Palavras que semeias ao vento".
Dalida resiste, portanto, à canção do bandido. Lætitia também. Eu não. E Jarvis Cocker é um ótimo bandido.
Ter dois amigos ou familiares, que não se gostam, na sala de estar, é das coisas mais embaraçosas que existem. Tendencialmente, achamos que, se a pessoa A gosta de nós e a pessoa B também, elas devem-se gostar entre si. Infelizmente, descobrimos que, muitas vezes, não é assim. E passamos a ter que convidar um ou outro, alternadamente. Passa-se o mesmo, com os nossos heróis.
No livro "Verdade tropical", Caetano Veloso escreve acerca da surpresa que teve, ao descobrir que o seu herói, João Gilberto, não gostava de Chet Baker. Confesso que também fiquei surpreendido. E, mais ainda, ao descobrir, no mesmo livro, que o meu herói, Caetano, não gostava de David Bowie. Não dá a entender, diz, preto no branco, que não gosta. Sem se importar com os meus sentimentos. Bowie também é o meu herói (com Caetano e Godinho, compõe, talvez, a minha "Santíssima Trindade"). Bowie faria, hoje, 75 anos. Hoje, vou juntá-lo, na minha sala, com Caetano. Pode ser que resulte. Nem que seja "Just for one day". Veremos.
Ler o jornal devia ser isso mesmo: ler o jornal. Um ato banal, corriqueiro, quotidiano. Será, ainda, um direito e um dever. Mas, hoje, ler o jornal - este, em particular - pode ser, também, um ato de solidariedade e luta. Que não se esgote no dia de hoje.